caos, conteúdo, criar, cansaço, coisas em geral.
#08 • eu estou tão cansada que eu acabei falando sobre estar cansada.
Há algo de perverso em “criar conteúdo”.
Não sei exatamente como ponderar meu incômodo — parece-me que é fácil falar de uma tempestade de coisas, mas uma vez que eu “tenha” que falar, emudeço. Se eu preciso definir um critério ou dois para decidir se esta ou aquela coisa é importante, então concedo à mim mesma uma autorização blasfema de deliberar a importância e desimportância das coisas do mundo. E eu penso em coisas, tantas coisas.
Esses dias, eu vi no Twitter uma pessoa perguntando como era pensar com palavras e vozes dentro da sua cabeça. Pois ela não pensava dessa forma. Ela sentia sede e, então, iria beber água. Ela sentia fome. E então iria na cozinha, onde pegaria a comida que quisesse. Ela não pensava “eu estou com sede” e enrolava por horas a fio dentro do seu quarto. Ela escrevia conforme escrevesse, sem elaborar mentalmente as palavras anteriormente, dentro de sua cabeça. Como se vive assim?, eu me pergunto, na mesma medida que este indivíduo faz a mesma pergunta sobre mim. Como se vive dentro da cabeça dos outros? Você não enlouquece? Eu enlouqueceria!, e eu digo que sim, e eu sou louca!, e eu não vou mentir dizendo que não.
Meu cérebro é uma pantomina. É caos, é cidade que cresce de forma desordenada e confunde-se com campo. É edifício brilhante ao lado de casa velha — provavelmente a casa ali, que existia na Avenida Rosa Cruz, há muitos anos, até que foi demolida e virou uma farmácia de franquia igual à todas as outras trezentas e dezessete farmácias existentes no sudoeste baiano. Eu amava aquela casa: ela era sombria, com arvorezinhas que alcançavam o telhado de tão altas, o mato cobrindo quase toda ela como em um abraço. Às vezes, via-se luzes acesas, às vezes não, mas ninguém nunca cuidava da casa, ninguém nunca aparava o mato, ninguém nunca fez daquele lugar algo que parecesse habitado por pessoas decentes e honestas. Pertence ao lúgubre, ao melancólico. É uma casa melancólica.
Eu passava horas sonhando em adentrar aquela casa, verificar seus fantasmas, descobrir a história sórdida que se descobria por trás daquelas paredes decrépitas.
No entanto, virou farmácia e, hoje, a casa existe só nas minhas memórias como um resquício das coisas que me foram amadas e que não existem mais. Não há espaço para a beleza neste mundo, eu afirmo com a certeza dramática de um artista. Daí eu digo que é o mal do capitalismo: eis um sistema que furta do mundo tudo o que é belo. Das florestas, das cidades, das pessoas: enxerga de tudo só quantas cifras pode incluir em sua conta bancária e nada mais. Penso já em como o selvagem capitalismo do século vinte-e-um, com sua terceira [ou quarta?] revolução industrial, molda novamente nossas relações de trabalho: hobby não é mais hobby, é trabalho. Ora, você é tão boa desenhando seu bullet journal, por que não tirar fotos e virar uma influencer dessas que passa seus dias postando no Instagram seus cadernos bonitos, suas letras bonitas, sua coleção estupenda de canetas, hidrocores, marcadores e adesivos? Luna, Luna, Luna, você é ótima em desenhar, em escrever, em pintar, em criar: cadê você vendendo essas coisas? Cadê? Meu Deus, que talento desperdiçado, que potencial incrível que vai para o buraco se você não lucrar com cada uma delas!
[você está entendendo o meu cérebro? Eu comecei falando do processo de pensamentos.
Então eu falei de uma casa mal-assombrada. Agora estou esbravejando sobre capitalismo. Daqui a pouco, vou falar sobre tubarões.]
O Substack tem mecanismo para que eu vendesse esses textos. Considerei seriamente. Não quis, por fim. Não que eu não precise: sou uma mera estudante de graduação e nada mais, e tenho um espírito extremamente materialista. Não materialista histórico: isso é outro departamento. Me refiro ao materialismo de Madonna quando esta canta I’m a material girl. Eu quero coturnos, e eu quero roupas bonitas, e eu quero uma bela casa com lustres e uma cozinha de plano aberto. Sigo instagrams de marcas de maquiagem e itens de papelaria. Não sou hipócrita: eu quero uma vida com coisas bonitas e coisas bonitas custam caro. Mas, então, por que eu olhei para o Substack com seus recursos de textos acessíveis somente aos assinantes por uma certa quantia e não quis? Eu não sei dizer.
Queria dizer que é uma silenciosa recusa a aceitar os moldes das relações de trabalho hoje em dia. Soa bonito, não soa? Parece até que eu li Marx e Engels e soube aplicar nos dias atuais. Mas não sei se é isso. Talvez seja. Talvez seja mais o temor de que se eu monetizar meus textos, então ninguém os leria. Preciso ser vulnerável e admitir meus medos, afinal de contas: eu morro de medo de ser uma artista relegada ao ostracismo em vida. Não há nada de bonito nas histórias do gênero. Mas, no fim, eu só não quero — imaginar não precisar inventar justificativas para desejos tão simples!
Mas, claro— não basta.
Faz algum tempo que não desenho, desenho. Sinto falta. Eu desenhava furiosamente quando era uma criança: minha tia tem, até hoje, oito pacotes enormes só dos meus desenhos de infante. Isso sem contar os primeiríssimos, os que vendi a um real lá na terceira série, os que fazia na escola, os que dei de presente, os que rasguei em meio à típica e tempestativa irritação de artista, os que fiz muito depois já mais velha. Eu acabava com cadernos mais rápido do que Jair Bolsonaro consegue cometer crimes de responsabilidade. Eu era uma artista prolífica enquanto criança. Sem técnica alguma, só a determinação firme de arrebentar os pulsos fazendo bonecos disformes.
Quando me tornei consciente sobre desenhar, eu parei de desenhar como antes.
Não me julgo: eu entrei em Artes por um motivo e era porque me pareceu divertida a ideia de viver uma vida fazendo Arte, com A maiúsculo e pomposo. Na época, estava considerando fazer videoclipes musicais ou então ser diretora de arte ou fotografia de filmes: parecia-me uma ótima ideia. Nada lucrativo, mas divertidíssimo! No final, tudo soava muito longe e acabei por decidir ser ilustradora e daí descobri que no ser ilustradora, a coisa que você menos faz é desenhar. O resto é manejo burocrático: atuar nas vendas, atuar nas redes sociais, atuar na recepção do dinheiro, atuar na auto-publicidade e ser muito, muito consciente do que você faz. Seu portfólio está bom?, seu portfólio tem infográficos, visual concepts de personagens, mapas? Sabe desenhar produtos, sabe desenhar em perspectiva, sabe usar um círculo de cores? Ora, tudo isso é importante: não me diga que não, pois vivo nisso há mais tempo que você.
É claro, você me dirá: há nichos diferentes. O que importa é o seu toque, a sua identidade.
Ah!, que palavras graciosas. Nichos. Seu toque, sua identidade, a sua marca.
Morte à identidade, penso eu. Morte à marca, penso eu mais firme ainda. Identidade, este é outro conceito problemático para mim. Não digo como o conceito em si, só em relação à mim. É meu texto, estamos falando de mim, afinal de contas. Pois bem. Quando eu era criança, havia uma piada entre meus colegas que era basicamente questionar à pessoa quem ela era. Daí ela respondia, sei lá, com o seu nome. Pedro. Então meus coleguinhas ririam e diriam: não, não, eu não estou perguntando seu nome, mas sim quem é você. Daí Pedro está confuso. Diz que é um brasileiro, um estudante, uma criança. Não, não. Não perguntamos sua nacionalidade, o que você faz ou a sua faixa etária, diriam meus colegas. Perguntamos quem é você. E caímos todos em um buraco existencial a nos perguntar, em tão tenra idade, o que faz de nós nós.
É um exercício filosófico interessante, acho eu. Faz você pensar.
Identidade é a auto-consciência de si, diriam uns. É um conjunto. Daí pergunto: até que ponto você pode tirar de você mesma e ainda reconhecer-se como tal? É isso que me desespera, em nível pessoal, particular, filosófico, mas também em nível empresarial: ora, como definir uma identidade para as coisas que faço e me manter consistente? Não vá me dizer que não precisa se haver consistência na internet!, afinal tudo é uma questão de encontrar seu nicho. Cantores sertanejos ficam no sertanejo, Meg Cabot escreve romances adolescentes como Meg Cabot e romances históricos como Patricia Cabot, Stephen King sempre está escrevendo terror e a minha ilustradora de erótico favorita, Apollonia SaintClair, faz e vende quase todos seus desenhos em preto-e-branco com detalhes requintados e bom conhecimento de anatomia humana. Existem padrões, existem tropes, existem nichos, existem categorias: favor respeitá-las.
Se sair disso, é bom que tenha uma boa desculpa.
Se sair, como sair? Se sair, sua identidade inteira muda? Se sair, como voltar? Se consistência é a regra, poderia eu transformar minha inconsistência em um padrão — entrando assim em uma espécie de paradoxo ou estranheza? Se minha cabeça é o caos e, portanto, meus projetos também o são, então como passar isso aos outros e ainda pagar as minhas contas, meus lustres e meus belos coturnos da Reversa que queria muito ter? Como vive, com essa cabeça, esse caos, essas frívolas contemplações filosóficas, no século vinte e um? Quanto tempo essa newsletter vai durar: e quem desabará será eu primeiro ou será o Substack quando for vendido para alguma gigante que alterará as regras do jogo?
É eficaz eu continuar seguindo pelo Instagram ou é melhor que eu transfira tudo para o TikTok? E quando o TikTok se tornar ultrapassado, que faço eu? Imagens estáticas não são mais a linguagem da internet, então tornarei-me uma eficaz cameraman!, e não há desculpa!, pois como dizem as vozes do marketing, é muito rápido e fácil fazer vídeos hoje em dia! Baixe o InShot, filme todo seu processo, edite o vídeo, faça ele caber em um minuto, adicione uma música disponível no acervo do aplicativo e espere engajamento. Interaja com seu público! Faça perguntas ao final dos posts! Faça desafios! Converse com as outras pessoas da comunidade! Faça parte de oficinas, de workshops, de correntes! Faça tutoriais, mostre o passo a passo! Engaje em trends! Verifique todos aqueles numerozinhos e não se iluda: de nada adianta ter um milhão de seguidores se somente cem comentam nas suas fotos, seus vídeos, seus textos. Isso é só 1% dos seus seguidores! É melhor ter menos seguidores, porém que sejam mais engajados: afinal, são eles que te dão retorno, pedem encomendas, falam de você, compartilham com os amigos.
Insira suspiro exausto aqui.
Em teoria, era para tudo isto aqui ter um ponto. Ter um objetivo. Tal qual uma análise acadêmica que montamos hipótese, metodologia, etc. Partimos do ponto A para alcançar o ponto B e então resolver as questões que nos perturbam. Eu cogitei tantos temas, tantas análises, ponderei com cuidado sobre qual serviria melhor, qual seria mais útil, qual atrairia mais os interesses das pessoas em geral. No fim, dei a vocês somente um fragmento do meu cérebro em sua desordem e é isso, sinto muito, não há nada que possa fazer. Eu sou o que sou, sou o que consigo ser, não o que quero ser, como diz Deborah Secco. E eu sou o que consigo ser em plataformas já definidas por empresas, seja elas gigantes, start-ups ou tudo isso junto. E, caso um dia a Google subitamente desapareça com todos os seus servidores, então todos esses textos — bem como os meus textos pessoais de mais de dez anos — desaparecerão juntos em um sopro. Faz-me pensar na fragilidade do que criamos, sujeito às intempéries da vida, dos incêndios, dos terremotos, dos ataques de fúria e das mudanças administrativas empresariais no Vale do Silício.
Como eu disse, criar conteúdo é algo de perverso — inclusive na denominação. Criar conteúdo — é muito, muito diferente de criar arte, ou apenas, criar. Não se borda mais — cria-se conteúdo sobre bordado. Não se desenha mais — cria-se conteúdo sobre desenho. Arte é caos, mas conteúdo deve ser organizado, catalogado, receber as hashtags devidas e vir de forma satisfatória ao espectador. Não estou, contudo, fazendo valor de juízo: se é bom ou ruim, honestamente, já não me interessa mais. O que me interessa é tentar descobrir como viver em meio à isso, uma vez que a recusa definitiva não é uma opção. Não quero, afinal de contas, viver no meio de uma roça desconectada da internet, isolada, acordando ao amanhecer para dar de comer às galinhas. Nunca fui boa com a vida em offline, afinal de contas.
Quero só descobrir como eu poderei viver em meio à isso sem pirar totalmente. Sem dar a louca, sem deletar todas as redes sociais, sem transparecer que, na real, eu queria que Mack Zuckeberg fosse para o inferno de uma vez por todas dançar tango com Steve Jobs. Ao mesmo tempo, como não parecer mais uma de tantas criando conteúdos e conteúdos e conteúdos que, honestamente, já tem tanto por essa internet?
Nós realmente precisamos de tanto conteúdo assim?
Ou o nosso problema é que o conteúdo é tanto que nos é impossível respirar?
Bem. Eis um conteúdo criado, escrito, antiquado, que chega por e-mail. Uma barbaridade, eu sei, eu sei. Tentarei recriar tudo em um minuto com uma música de Doja Cat no fundo. Rápido. Com algumas carinhas fofas. Talvez eu encenando três personagens ao mesmo tempo. Enfim.
Bebam água. Descansem. Digam às vozes da sua cabeça que está tudo bem se sentir meio sobrecarregado com os estímulos atuais: é realmente muita coisa, para todo mundo. Informação demais nem sempre faz bem. Que as nossas vozes da nossas cabeças consigam descansar um pouco.
Um cheiro,
Luna.
P.S.: para não dizer que não falei de tubarões, então aqui temos tubarões.
Descrição da imagem: eis um tubarão rascunhado em rosa-escuro contra fundo chapado rosa-claro. Ele está nadando e a linha de sua mandíbula está curvada para cima, de forma que parece um tubarão feliz. Há linhas curvadas e brilhinhos em branco ao redor, dispostos de forma aleatória. Parece um tubarão feliz e suave em um mar cor-de-rosa.
Ah..... os misteriososs labirintos do cérebro... Caos foi uma palavra bem adequada para esse texto. Muito interessante de ler, como sempre, mas parecia menos direcionado que o usual.
Achei maravilhosamente profunda essa "piada" sobre quem a criança é... como exercício filosófico, 10/10, mas consigo vislumbrar umas crianças com umas crises existenciais conversando com os pais "mãe, quem sou eu?" e precisando de muitos anos de terapia para aceitar que essa pergunta pode não ter uma resposta, ou no mínimo uma resposta que possa ser verbalilizada.
Louco isso da identidade do artista, falando como uma pessoa leiga, com pouquíssimas pretensões artísticas, nunca refleti muito sobre essa questão da identidade, isso era perceptível nos outros, dava para olhar para um ou outro artista e perceber o seu "estilo" sua "identidade artística", e sempre achei que isso fosse algo natural: "esse é o estilo de tal artista porque ele percebeu, provavelmente com muita tentativa/erro, que nesse estilo ele está mais confortável e consegue melhor se expressar" (sem querer aqui entrar na discussão do que é arte e se ela é sempre proposital). Mas você traz uma intencionalidade nessa busca por identidade que eu nunca tinha pensado sobre.
Bom... eu posso dizer que gosto do seu conteúdo... Esse formato me atrai, mas sei que sou uma pessoa um tanto antiquada no que diz respeito às trends da interação social digital. Mas acho que eu poderia gostar de outros formatos... eu costumo gostar do que você tem para dizer e se você achar que ele pode/deve ser dito de outra forma, eu provavelmente vou gostar.
Obs.: Gostei bastante do tubarão... dos desenhos postados aqui foi o que mais gostei (exceto, talvez, pela arte do "'terapia em dia' é golpe", também gostei bastante daquela arte)