Às vezes, olho para o lado e contemplo a minha coleção de mangás de Rurouni Kenshin.
E mergulho em melancolia.
Eu também estou cansada de pensar, falar ou ter opiniões sobre Harry Potter.
Eu realmente estou cansada.
Porém, eu sinto que não falei tudo que penso — e o que não penso.
Não sei se disse isso antes, mas eu fiz Bacharelado em Artes. Isso significa que passei quatro anos nos morros da UFJF tendo aulas sobre história da arte, pintura, cinema e moda. Aprendi a pintar um corpo renascentista, editar vídeos, dizer se uma pintura é do século XVIII ou XIX através das roupas, por quê obras de arte custam tão caro e sobre como absolutamente tudo é problemático. A arte é o refúgio dos canalhas. Pintores, cineastas e teóricos: há, em todos, a centelha da mais pura perversidade humana da qual jamais se envergonham, pois pensam nela como necessária para fazer arte. Paul Gaguin fez de esposas meninas indígenas de treze a catorze anos em Taiti. Pablo Picasso teve um longo histórico de abuso com suas mulheres, supostamente musas adoradas e, ao mesmo tempo, vítimas em seus jogos de poder. Salvador Dalí se fez de sonso diante da ascensão do fascismo na Espanha ao ponto de ser expulso do grupinho dos surrealistas e, dali, declarou apoio público ao ditador Franco. Charles Chaplin? Casamento com menina de 15 anos. Woody Allen? Abuso sexual contra a própria filha. Louis Althusser matou a própria esposa. Roald Dahl, famoso por escrever Matilda, A Fantástica Fábrica de Chocolate e James, o Pêssego Gigante? Um puta antisemita de carteirinha.
E a lista continua.
Qual é exatamente meu ponto? É sobre que se tudo é problemático, então não tem importância eu ou você jogar Hogwarts Legacy e dar 350 reais à empresa, dos quais uma porcentagem irá para as mãozinhas de Joanne? É sobre como deveríamos ignorar todo o legado que essas pessoas nos deixaram, por mais escrotas e perversas que tenham sido em suas vidas? Não há consumo ético no capitalismo, então foda-se?
É sobre isso?
Não tenho certeza.
Eu comecei a ler O Retrato de Dorian Gray ontem. Ele começa com um prefácio que, honestamente, eu acho interessantíssimo: uma sequência de várias frases que funcionam como motes para nortear, de certa forma, a leitura do livro. Você pode ler ele em português aqui com uma pequena nota explicativa. Foi escrito pelo Oscar Wilde em uma tentativa de explicar o seu ponto de vista sobre a arte e a moralidade em uma resposta às críticas sofridas em relação ao livro que tinha lançado. Bem, O Retrato de Dorian Gray sofreu críticas em sua época exatamente pelo mesmo motivo que sofreu mês passado: as pessoas odeiam gays e odeiam mais ainda putaria com gays. Absolutamente imperdoável! Mas há uma coisinha que esse querido do Oscar Wilde escreveu ali no prefácio que me fez pensar.
Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco.
Há várias outras frases muito mais emblemáticas: posso escrever sobre várias delas. Provavelmente o farei. Mas eu gosto desta frase porque me fez pensar em Harry Potter, me fez pensar nas telas de Picasso, me fez pensar em todas as coisas que assisto, amo, odeio, consumo, devoro, repudio, adoro e absorvo em minhas entranhas. Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Eis uma frase poderosa. Toda arte é exatamente o quê ela é. E ela é mais. E ela é menos. E ela é. Ela simplesmente é. Rurouni Kenshin é um mangá e um anime sobre um samurai tentando se redimir após seus anos de assassinato em prol da era Meiji. E também é uma obra sobre culpa, redenção, política e amor. Mas também é símbolo — se fazem filmes atuais, é uma ofensa não pelo Kenji Himura, mas pelo seu autor que, por detrás da sua obra, consumiu pornografia infantil e ainda é protegido pelos seus, pagando seus advogados e suas multas com dinheiro adquirido pelos anos que trabalhou como o grande cara criador de Rurouni Kenshin.
Não é uma sensação boa pensar isso: que eu ajudei a pagar esses advogados a cada vez que olho para aqueles mangás. Que eu assisti os filmes da Netflix em 2012 e cada centavo de royalties foi para o bolso dele que, provavelmente, usou para pagar a internet que usou para ver conteúdo criminoso. Faz-me sentir suja. Faz-me sentir perversa e cúmplice de um crime cujas repercussões psicológicas me são conhecidas até demais.
Penso nas telas de Picasso.
Penso em Lovecraft e nos seus registros.
Eu leio as páginas de Wikipedia de cada uma dessas pessoas, tentando compreender aqui e ali, e penso, penso, penso. Há uma solução fácil? Há como repudiar o ato sem repudir a obra? Há como não se sentir corrompido quando a mente por trás do que amamos é justamente o que odiamos? É possível, de fato, responder à infame perguntar: separar o artista da obra?
E se não for possível?
O que fazemos? Toda a Arte está maculada desses artistas imbecis, pedófilos, abusadores, antisemitas, racistas, misóginos, criminosos, perversos. O que fazemos se não for possível?
Toda arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco. É engraçado.
Isso é estranhamente apropriado ao Harry Potter.
Veja bem: eu amo Harry Potter. Eu fui uma criança que cresceu com os livros de Harry Potter. Uma das minhas memórias mais preciosas é de minha irmã lendo Harry Potter para mim, porque eu era criança e livros sem imagens ainda me intimidavam. Não me sentia capaz em lê-los, mas ela sentava-se ao meu lado e leu cada um dos quatro primeiros livros, pacientemente, com um dicionário ao lado caso eu não soubesse alguma palavra. Na adolescência, eu descobri as fanfics de Harry Potter e foi através delas que eu me redescobri como escritora e como uma pessoa LGBT+. Eu fiz amigas incríveis que não teria feito em outro contexto. Eu administrei um jogo de RPG por quatro anos nos quais eu me afundei na obra a ponto de saber todas as linhas, todos os nomes, todos os detalhes e compreender a obra pelo avesso.
Eu fui além da superfície.
Por minha conta e risco.
Não foi bonito.
E se eu faço esse texto com afeto, com emoção transbordante, é porque eu acho que precisa. É porque eu quero honrar os nossos eus magoados com tudo isso — e compreender como reparar pelo que achamos certo. E como posso eu, que amei tanto Harry Potter, saber o quê fazer agora que eu odeio tanto a sua criadora, odeio tanto o que ele representa, odeio tanto a sua superfície e seu símbolo — sem me quebrar no meio, uma vez que esta obra foi tão importante na construção da minha vida, em tantos sentidos? Como repudiar ao Harry Potter e abraçar ainda as memórias positivas em minha vida? E, ao mesmo tempo, nunca deixar esquecer todas as coisas perversas feitas dentro e fora da obra?
É moral jogar Hogwarts Legacy?
Ou isso realmente importa? — pois se você pergunta isso, no Twitter, para todos verem, cabe-me questionar: é uma pergunta sincera ou é apenas você tentando, desesperadamente, dar a si mesmo uma autorização expressa por parte das pessoas transgêneras e judaicas para jogar algo e se sentir de novo com dez anos de idade, quando o mundo era mais brilhante?
É imoral jogar Hogwarts Legacy?
Ou isso realmente importa? Faz alguma diferença, no grande espectro das coisas, você comprar este ou aquele jogo, jogar Hogwarts Legacy ou Genshin Impact com suas acusações de racismo? É imoral jogar? É imoral ler? É imoral ou ler ler, assistir, ver, consumir? São perguntas que têm uma resposta? Eu estou escrevendo todas essas palavras para o quê, afinal? Eu tenho algum ponto além de dizer como tudo isso parece uma bagunça muito maior do que eu esperava?
Há, porém, algumas crenças minhas. Eu tenho valores, afinal de contas.
Não há como separar a obra do artista. É impossível. Gaguin, enquanto estuprava meninas indígenas de treze anos de idade, usava-as como modelos e as pintava em suas obras célebres. Picasso foi até o continente africano e se inspirou na arte de lá. Apropriou-se, devorou-a e a vomitou de volta na sua tela. Diversas pessoas conheceram a África pelo Picasso, não pela África em si. Conheceram a África e as mulheres de Picasso pelas telas — enquanto eram agredidas em casa, elas eram suas preciosas musas, úteis enquanto fossem inspiração.
Lovecraft externou seu racismo em suas obras — o medo do desconhecido, o medo do outro, o medo xenofóbico externado ao extremo. Lewis transformou o seu outro — muçulmanos, árabes e populações “exóticas” em geral — em inimigos a serem combatidos nas crônicas de Nárnia. Tolkien fez o mesmo: os inimigos em Senhor dos Anéis, curiosamente, refletem estereótipos raciais. Não são coisas tiradas da minha cabeça. Outras pessoas já notaram e falaram sobre. E, sim, J. K. Rowling fez a mesma coisa em Harry Potter: ali estão suas ideias sobre raça, gênero, moral e política, seja de forma positiva ou negativa.
Se Hogwarts acolhe Inglaterra, Escócia, País de Gales e irlanda sob o mesmo castelo, isso é uma declaração política considerando as tensões políticas entre estes países que existem por séculos. Se há uma espécie mágica que aprecia a escravidão e vê a liberdade como desonra, isso também é uma declaração da normalização de Rowling sobre o seu próprio folclore (checar sobre os brownie). Se, ao final do sétimo livro, os sonserinos não podem lutar lado a lado com os outros por serem considerados suspeitos, é uma declaração de como Rowling vê Slytherin (e daí eu aconselho enormemente a leitura do texto de Izzo sobre o que significa a manutenção da casa de Slytherin dentro de Hogwarts). Se no epílogo, Harry afirma que “Severo Snape foi um dos melhores homens de sua época” ao ponto de dar o nome de Severo ao seu filho e esta ser, literalmente, a mensagem emocional que fecha a obra, então nós sabemos que Rowling acredita que, para Harry, vale mais o que Snape fez por ele, particularmente, do que o desempenho dele como professor e diretor — lembrando que na época dele como diretor, os alunos foram, literalmente, torturados por Comensais da Morte. Se Rowling menciona, de forma negativa, o peso dos personagens (especialmente de Dudley) diversas vezes, podemos entender que ela não vê pessoas gordas com bons olhos. Se Cho Chang é um nome que confunde até asiáticos no Reddit enquanto tentam compreender a etimologia dos nomes, então sabemos que não foi um nome muito bem escolhido e isso indica um certo desleixo de Rowling em compreender nomes que não são de sua cultura. Se Rita Skeeter, uma das personagens mais desprezíveis de toda a obra, é descrita como tendo traços “masculinos” e não há mais nenhum outro personagem considerado “bom” da mesma forma, podemos pressupor que essas características foram associadas de forma negativa em sua obra.
Veja bem.
Não estou aqui dizendo que Rowling é racista, antisemita, xenofóbica, gordofóbica, transfóbica ou qualquer coisa do gênero. Primeiro, porque não tenho advogado. Segundo, porque não me interessa aqui nesse parágrafo em específico. Não me importa se ela tinha intenção ou não de fazer parecer desta ou daquela forma. Não me importa at all.
Mas me importa como essas coisas foram postas.
E como elas podem ser interpretadas.
E em como elas podem influenciar outras obras, outras visões, outras pessoas.
Por isso que eu volto à questão:
o problema é “só” jogar Hogwarts Legacy ou o problema é… a defesa?
Quero dizer— se eu quero ouvir um album de alguém que foi “cancelado” na Internet [e tenho muitos problemas com esse termo], eu ouço. Em silêncio. Sem ir no Twitter sobre como eu tenho o direito de ouvir aquilo e que as pessoas estão exagerando com seu cancelamento em torno daquele artista porque ele fez isso ou aquilo, falou isso ou aquilo. Idem quanto aos livros, filmes e quaisquer outras coisas. Ninguém aparecerá na sua casa mandando você jogar fora os seus mangás de Rurouni Kenshin, nem pedirá para você queimar os seus livros de Harry Potter. Ninguém nunca jamais irá te condenar por ir a um museu ver obras de Picasso.
Mas— com Harry Potter é diferente.
Com J. K. Rowling é diferente. Há um certo barulho, há um certo movimento na internet. Há questionamentos. Há um dilema moral e há uma campanha organizada de boicote por parte de diversas pessoas. Por quê?
Você poderia argumentar que é porque ela é uma mulher. Hm. Poderia ser. Daí eu penso nas várias mulheres que também tiveram sua cota de posturas problemáticas, falas terríveis e… bem. Não. Perdão, mas não. Você não vê, com frequência, pessoas reclamando sobre outras pessoas que ouvem albuns de Taylor Swift. As pessoas ainda gostam de Gwen Stefani mesmo que, no pico da apropriação cultural como trend, ela tenha carregado junto de si quatro moças japonesas que viviam caladas como se fossem acessórios. Stephenie Meyer escreveu uma saga terrivelmente racista e você não vai ver ninguém apregoando boicote. Collen Hoover tem uma péssima fama devido às suas obras, mas a proporção é muitíssimo diferente. Luísa Sonza respondeu a um processo por racismo e também não há boicote organizado contra suas novas músicas. Anitta é… Anitta e. Bem. Continuamos checando suas novas músicas no YouTube para falar bem, mal ou apenas falar.
Não. Tem algo além.
Eu vou falar o quê acho que é.
Eu acho que é uma somatória de vários fatos. Primeiro, o fato de que Harry Potter foi um fenômeno cultural. Lembro de matérias falando sobre recordes e sobre como dava para dar voltas ao mundo se enfileirassem todos os livros vendidos, um por um. Não foi um fenômeno orgânico, não inteiramente e aqui há um vídeo que explica os esforços conjuntos da Warner com a AOL para divulgação, massificação e vendagem de todo merchan possível. E deu certo. Deu muito certo. Harry Potter é um fenômeno de mais de vinte anos no qual tudo relacionado vende como ouro, e a sua história é revisitada várias e várias vezes em diversas análises da internet. Até hoje, há influencers que vivem de falar sobre Harry Potter. E quando falo fenômeno, eu falo literalmente de pessoas que foram moldadas pela experiência da obra, do fandom, da loucura toda em si.
Há, para além disso, um certo problema. Eu não sei se ele é novo ou velho ou se veio junto com o capitalismo. Mas parece-me que, Houston, temos um problema: as pessoas do século vinte-e-um se definem a partir das coisas que gostam e compram.
É um fenômeno curioso que percebo recentemente — e merecia uma análise por si: a incapacidade de dissociar a si mesmo do que gosta, do que é fã, do que admira. Portanto, se eu gosto de— por exemplo! —, Steven Universe, então a minha persona é atrelada a este desenho. E se o desenho toma rumos dos quais discordo — como o perdão das colonizadoras por Steven —, então eu deixo de gostar da obra ou entro em um elaborado processo de negação tentando achar uma forma de justificar aquele plot — porque, na verdade, estou tentando me justificar. Não sei se eu estou sendo louca, mas eu tenho uma ligeira impressão de que isso está ficando realmente… comum?
Ter a sua personalidade pelo consumo não é novidade: desde que o capitalismo existe e que as empresas descobriram que é possível vender ideias acopladas aos produtos, o mundo nunca mais foi o mesmo e as pessoas tiveram novos motivos para desenvolver transtornos psicológicos. Ora, compre este cigarro, ele é sobre pessoas modernas! Compre essa cerveja, ela é para pessoas legais! Compre esse coletor menstrual, ele é para pessoas que se preocupam com o meio ambiente! Isso é marketing básico: venda a experiência para além do produto, venda a ideia para um público alvo específico e atrele aquele produto com traços de personalidade. Definimo-nos, portanto, a partir do que consumimos, e isso se estende às marcas que defendemos tolamente nas redes sociais — veja só as discussões entre Xiaomi, Samsung e iPhone.
Mas o lance aqui é que:
ficção é produto também. Crepúsculo, Riverdale, Friends, tudo isso é produto. É arte? Pode ser, mas é produto também. É feito para ser consumido. E como produto consumido, ele define e é por isso que as críticas doem — porque se a gente se define pelo que consome, e se a ficção é um produto, então nos definimos a partir dessas obras de ficções. A crítica resvala, portanto, para além da obra — ela cai diretamente naquele que comprou e amou o livro, naquele que usa o nome de um personagem no nickname do Twitter, naquele que usa a foto de uma personagem na conta do Twitter.
Não é uma novidade.
Pense em animes. Pense em bandas de rock. Pense em como pessoas constroem suas identidades inteiras — grupos de amigos, crenças morais e políticas, as roupas que vestem — através das obras de ficção que gostam, apreciam e consomem.
Daí, no caso específico de Harry Potter, penso que há ainda uma especifidade que não há, por exemplo, com Stephenie Meyer: a J. K. Rowling é muito ativa e atrelou a si mesma ao Harry Potter de uma forma quase impossível de se romper. Não é só o fato de ela estar viva, ao contrário de Lovecraft ou Tolkien. É também o fato de que a associação dela com sua magnum opus é tão, mas tão indissociável que criticar Rowling se tornou criticar Harry Potter, e criticar Harry Potter se tornou criticar Rowling.
E é por isso que, na minha opinião, esse debate se tornou tão intenso, tão visceral, tão doloroso para algumas pessoas e tão difícil: estamos falando de literais direitos humanos, que devem ser respeitados, e de uma autora que vai na contramão e, ao mesmo tempo, estamos falando de afetos mobilizados pela nostalgia infantil e não, isto não é racional — não é que ambas as coisas tenham o mesmo peso, longe disso, mas simplesmente não é um debate racional. Estamos falando de sentimentos conflitantes — afinal muitas pessoas trans também amam Harry Potter — e de literais processos de luto ao compreender que as memórias infantis pertencem à infância, somente à ela, e que pode ser impossível revisitar coisas positivas de quando éramos crianças sem o gosto amargo da realidade.
Para além destes três fatores, considero, particularmente, que Rowling era admirada a um nível pessoal que outras pessoas talvez não fossem. Rowling era essa mulher pobre, fodida, mãe solo, vítima de violência doméstica, escrevendo Harry Potter em guardanapos (uma história que nunca foi real, mas era repetida com certa frequência) em um café enquanto tentava dar um rumo à sua vida. Ela trabalhou na Anistia Internacional. Dedicou parte do seu tempo à caridade. Fez coisas incríveis. Financiou pesquisas sobre esclerose múltipla, doença que vitimou sua mãe. Como pode uma pessoa não ser incrível? Como pode ninguém admirá-la? Ora, todo mundo a admirou. Ela ganhou vários prêmios. Fez um bocado de filantropia — e faz até hoje, inclusive. Ganhou prêmios por tudo isso. Era uma história de inspiração, um exemplo de superação. E gostar de Harry Potter, geralmente, envolvia gostar de Rowling também. Quando Rowling anunciou o Pottermore, então seu nome tornou-se ainda mais íntimo. E quando ela dava as suas opiniões sobre o universo, dando declarações póstumas, a coisa se complicou mais ainda: porque Harry Potter não era mais só o quê estava contido nas sete obras + os livros extras, mas também as declarações de Rowling dadas no Twitter, nos jornais e por aí vai.
A famosa analogia da licantropia com HIV? Foi Rowling quem disse, não os livros. Dumbledore é gay? Foi Rowling quem anunciou isso, não os livros. Tem judeus em Hogwarts? Foi Rowling quem falou, pois não está nos livros essa informação.
Harry Potter, portanto, não terminou em 2007. Simplesmente ainda não acabou.
É uma saga condicionada à existência da sua criadora — enquanto Rowling estiver em posse do seu Twitter e poder escrever “na verdade verdadeira, Harry é apaixonado por Draco Malfoy”, a saga vai continuar existindo. As informações vão continuar vindo. O universo ainda está sendo construído. Essa merda não acaba. E não acaba porque Rowling continua mantendo a existência disso tudo ao mesmo tempo que seus royalties continuam vindo. Os sete livros foram escritos, os livros extras foram lançados, os filmes principais foram feitos, mas tudo continua acontecendo em uma história infinita e contraditória que nunca se resolve — como o universo da Marvel.
Mas, pelo menos, a MCU tem a honestidade de se reconhecer caótica, confusa e infinita.
Rowling utiliza a própria fala como uma forma de complementar o que não escreveu — seja por esquecimento, omissão, incompetência ou desinteresse. E quando ela faz isso, ela coloca a si mesma como uma persona do próprio universo de Harry Potter que, ao mesmo tempo, emite opiniões sobre este mundo, aqui, real, concreto e material. Então devemos aceitar Dumbledore gay não porque está escrito em letras claras nos livros, mas porque Rowling disse — e se ela disse, é verdade. Rowling determina, portanto, a própria interpretação na forma como consumimos (ha ha, eu odeio essa palavra agora) a saga dela.
Veja bem, não estou dizendo que isso é certo ou errado. Foda-se.
Mas acontece.
É assim que Rowling e Harry Potter se tornou uma coisa indissociável, uma na outra. É por isso que é possível jogar League of Legends e odiar a Riot Games, mas não é possível jogar a porra do jogo sem entrar em um dilema moral. É por isso que eu posso estudar Althusser na faculdade, fazer as devidas observações sobre o fato de que ele é um surtado completo que matou a própria esposa estrangulada e seguir em frente. Eu posso lidar com estudar Picasso e Gauin, compreender as suas importâncias para a arte e paralelamente compreender o quão lixo humano eles foram como pessoas. É possível ter Nightmare Before Christmas como filme predileto da sua infância e odiar Tim Burton pelo racismo na mesma medida. Mas está sendo impossível fazer isso com Harry Potter simplesmente porque Rowling, enquanto lucra com os nossos sentimentos baratos assim como Tim Burton ou Riot Games, não nos permite abstrair quem criou Harry Potter. Estamos constantemente lembrando dela toda vez que se fala de Harry Potter e vice-versa. E isso faz diferença na nossa percepção de ambas as coisas e no que sentimos em relação à saga.
Tenho um amigo que diz que as coisas seriam mais fáceis se ela tivesse morrido em 2007.
Wow. Dark.
Mas realista.
Péssimo, né? Não sei. Eu não me sinto horrível por isso nem nada.
Me sinto muito pior pensando em todas as pessoas magoadas até agora, por Rowling ou Harry Potter. Eu me pergunto se valeu toda a minha bonita nostalgia. Todas as coisas boas que eu tive nesta experiência de ser fã — coisas incríveis, graciosas, pelas quais eu sou grata — até onde vale a pena eu ter tido elas a troco de Rowling ter a plataforma para falar certas coisas? Até que ponto a filantropia dela — e o trabalho incrível com muitas coisas, inclusive com as mulheres no Irã, por exemplo — compensa os tweets transfóbicos, a associação com feministas radicais também terrivelmente transfóbicas e todas as associações preguiçosas e racistas da sua própria obra? Ela é humana, eu sei, e eu também e temos as nossas contradições. Eu não estou aqui para falar que Rowling é a pior pessoa do mundo: tenho certeza que ela é ótima para algumas pessoas e que suas instituições ajudaram muito. Mas eu estou aqui para dizer que ela também não é uma ótima pessoa e, sim, isso se reflete em Harry Potter.
E é importante saber disso.
Se você, como eu, é uma pessoa que ama Harry Potter, é ainda mais importante saber disso. Não se pode amar aquilo que não conhece — e é fundamental que você identifique exatamente o apelo para você. É o sentimento gostoso de querer um mundo mágico quando tinha dez anos? É a inocência de quando você leu esse livro sem perceber todos os problemas? Tudo bem. Você não é uma pessoa horrível por isso. Mas seria horrível de sua parte se, hoje, mais de vinte anos depois, for incapaz de reconhecer que mesmo as coisas mais legais, mágicas e infantis não são bonitas: o filme Anastacia é anti-comunista de uma forma grotesca, a história original de A Bela Adormecida envolve estupro, o nosso folclore brasileiro usurpa lendas indígenas e descontextualiza-as de suas culturas, a Nickelodeon da década de 2000 é cheia de casos de abuso sexual e psicológico e os nossos pais não fazem a menor ideia do que estão fazendo na maior parte do tempo.
E isso é reconhecer que a vida adulta chegou.
Não vejo relação entre gostar ou não de Harry Potter ou gostar ou não de Rowling: aos meus olhos, é só uma versão de permitir que os seus gostos te definam como pessoa e não é o caso. Não é moral ou imoral gostar ou desgostar das coisas. Não acredito em relação automática dessas coisas, nem em relação ao conteúdo, nem ao criador. Gostar ou desgostar é muito mais complexo do que a sua própria conduta moral. Envolve afinidades afetivas, repertório anterior, simpatias por este ou aquele plot ou personagem e até mesmo o momento o qual você está vivendo naquele momento. Às vezes, você odeia um livro e decide reler dez anos depois e, opa!, você gostou dele. E, às vezes, você é muito fã de uma série aos vinte anos e decide pegar para rever seis meses depois e, wow, que série horrível!
Curiosamente, há uma frase de Oscar Wilde sobre isso:
Na realidade, a arte reflete o espectador, não a vida.
Gostar ou não: é complexo e involuntário. Eu amo Brumas de Avalon com todas as forças do meu ser e, honestamente, eu queria uma série — mas a escritora (que morreu, felizmente) era uma filha da puta que foi negligente com a própria filha e permitiu que ela fosse abusada sexualmente pelo próprio marido, pai desta filha. A filha cresceu tão traumatizada que virou extrema-direita e defende que homossexuais não possam criar filhos. Terrível, eu sei. Mas meu gosto pela saga permanece por várias questões: eu li quando era adolescente e depois reli, me influenciou religiosamente na época, me fez apreciar certos tipos de personagem, me fez odiar tanto a Guinevere que eu quis escrever algo igual, me fez gostar mais de História, me fez chorar às quatro da manhã com o fim do paganismo.
Vou conseguir desfazer essas memórias a partir do momento que sei quem foi a autora?
Não.
Mas percebe? Enquanto gostar é quase inconsciente, defender é inteiramente consciente. Enquanto ver um filme e se divertir é meio que involuntário, dizer que o filme é ótimo é um ato consciente — e se o filme for divertido, porém ofensivo, é inteiramente sua responsabilidade comentar ou não sobre. Não estamos falando de sermos juizes acima do bem e do mal, julgando sentimentos, mas estamos falando de seres humanos tentando manter um mundo mais ou menos respeitoso entre os nossos pares.
E eu não vou defender Harry Potter.
Harry Potter pode ter sido mágico na minha infância. Sim. Mas a saga tem diversos problemas — e a sua autora também. Harry Potter não precisa ser defendido. Rowling não precisa ser defendida. Harry Potter é uma obra de ficção. Não magoa a ninguém dizer que o livro contém passagens gordofóbicas, mas magoou a alguém a forma como Rowling escreveu tantas vezes que Dudley, um dos personagens mais repulsivos, era gordo. Goblins não existem, mas judeus sim — e não foram poucos que apontaram sobre o uso desses estereótipos de forma recorrente na ficção. Sim, os elfos domésticos não existem, mas ressoa mal em nós ver uma personagem ser ridicularizada por ser contrária ao trabalho escravo — porque nós vivemos em um mundo que odeia pessoas gordas, que discrimina pessoas judias e que escravizou sociedades inteiras por anos.
Harry Potter não precisa ser defendido por ninguém.
Hogwarts Legacy muito menos.
Rowling, menos ainda — gente rica não precisa de defesa e eu achava que isso era uma regra sólida entre nós, mas aparentemente não.
Então se você quiser jogar Hogwarts Legacy, faça o que quiser: ninguém irá na sua casa quebrar seu computador. Você não vai perder seu emprego ou sua bolsa na faculdade por conta disso. Simplesmente… jogue. Dê seu dinheiro. Eu não faria isso — 200 a 350 reais é tanto dinheiro —, mas faça isso de uma vez. Dê logo. Jogue de uma vez por todas.
Eu estou tão cansada dessa merda.
Mas, ao menos, tenha algum respeito: não defenda o que não precisa e não deve ser defendido. Porque quando uma pessoa faz isso, ela não quer realmente defender Harry Potter, ela quer se defender. Ela quer garantir a si mesma — e aos outros — de que ela é uma pessoa boa. De que ela é aliada da causa trans, no caso dos tweets de Felipe Neto. E, honestamente?
Que bosta.
Se você precisa não consumir algo para ser considerado legal, uau— que bosta.
Não sei o quê dizer em resumo.
Não sei nem como concluir.
É isso, então?
É isso.
Diga às vozes da sua cabeça que elas não são fontes para nenhuma análise. Siga e leia pessoas judias, asiáticas, negras, trans e minoritárias em geral. Leia sobre o feminismo radical crescente na Inglaterra e pense em como isso se entrelaça às ideias apresentadas por Rowling. Essa semana, uma garota morreu. Esfaqueada. Ela tinha dezesseis anos, e será enterrada com seu nome masculino. E aqui no Brasil, é assim também — mas Rowling não reconhecerá essas coisas. Em vez disso, ela fará bastante tweets sobre Irã — o que não é ruim, mas faz parecer que ela se importa muito com mulheres, sendo que não é lá muito verdade. Porque se fosse, ela não teria mandado um buquê para Marilyn Manson (lembrando que embora o nome não tivesse sido dado por Evan Rachel Woods, ela já tinha falado no Congresso sobre seu abuso e já se sabia, informalmente, quem era seu ex abusador), nem agradecido tão fofamente ao cara que dublou dez vozes em Hogwarts Legacy enquanto defende Trump e tem histórico de violência sexual. Ela defendeu Johnny Depp como parte do elenco em Animais Fantásticos enquanto Amber Heard o acusou de abuso no relacionamento.
Então. Repita às vozes da sua cabeça: não há nada de errado em você por gostar ou não de Harry Potter. Mas, você tem a escolha de permanecer defendendo uma fantasia nostálgica ou de reconhecer, frente a frente, os problemas dela e compreender que vivemos em um mundo muito mais complicado do que histórias bonitas sobre garotos salvando o mundo de vilões malvados. E, às vezes, isso significa apontar para as coisas e pessoas que amamos e dizer que, sim, elas também têm problemas, que esses problemas são sérios, que podem e devem ser chamadas à atenção e é isso. E que só resta a nós lidar com sentimentos conflitantes enquanto tomamos escolhas pelo quê acreditamos ser melhor para o mundo — que contém pessoas de verdade, diferente das obras de ficção.
Um cheiro,
Luna
Descrição da imagem: um homem de cabelos claros beijando o pescoço de outro rapaz, de cabelos negros e olhos verdes, usando óculos. Cada um representa respectivamente Draco Malfoy e Harry Potter. O desenho, embora digital, é feito ao estilo da aquarela, com borrões e textura de papel.
Sim. Eu aproveitei a oportunidade para desenhar Drarry? Sim. Se Harry Potter tivesse tido um enemies-to-lovers real e gay, ficaria uns 150% melhor e eu vou morrer defendendo isso — e se eu estiver viva quando Rowling perder os copyright dela, eu vou reescrever Harry Potter inteiro nessa lógica.