jack dawson precisava morrer. podemos seguir em frente agora?
#12 • às vezes, tudo o que uma mulher precisa para brilhar é que seu homem esteja morto.
Não sei se você está sabendo — vai que seja uma dessas almas abençoadas —, mas James Cameron está lançando outro filme. Pior: ele está lançando uma sequência de Avatar, filme este que foi lançado em 2009 e conseguiu o incrível feito de ser incrivelmente caro, extremamente ambicioso, estupidamente revolucionário e, no entanto— qual é realmente a influência cultural de Avatar? Não há. Simplesmente— não há. Ninguém nunca usou uma única linha como meme. Não há outros filmes ou livros ou séries que tenham ganhado alguma relevância que reproduziu alguma cena, algum diálogo ou que tenha tido qualquer sombra de inspiração em Avatar. É um filme absolutamente nulo e o site Archive of Own, que é exatamente o segundo melhor site do mundo, concorda comigo: agora, às 03h da manhã do dia 18 de dezembro, há 347 fanfics com a tag “Avatar (Cameron movies)” na tag de “fandom”. Ninguém quer escrever sobre essa merda. E se ninguém nem mesmo quer escrever mais de cem fanfics sobre Na’vi transando uns com outros usando dildos alienígenas, você pode ter certeza: flopou. E flopou feio.
Mas James Cameron não é um diretor péssimo.
Ele é uma pessoa fascinante: a Wikipedia me diz que ele 1) é bacharel em física; 2) foi o primeiro homem a descer sozinho de um negócio lá nas Fossas Marianas e 3) ele era caminhonheiro quando assistiu Star Wars IV, em 1977, e decidiu que não, seria muito mais legal se ele fizesse filmes. Ele é basicamente um físico caminhonheiro que virou diretor de longas metragens muito, muito caros. A Wikipedia também me disse que ele é bro de Guillermo del Toro (nice!) e não é tão bro assim nas relações de trabalho (it’s not nice, Jemmy!). Mas, antes de Avatar, ele fez filmes célebres como Piranha II: Assassinas Voadores, Aliens (que é o segundo, favor se atentar à palavra estar em plural), O Exterminador do Futuro e, o meu favorito de todos, Titanic.
Titanic não é um filme de ficção científica nem sobre piranhas, mas se passa na água e explora um interesse particular de James Cameron: exploração em mar profundo, hobby este no qual ele gasta muitas horas e ainda mais dinheiro. Mas eu não vou falar mais de Cameron, esse safado que não sabe fazer nada com menos de cem milhões de dólares. Eu quero falar de Titanic, sobre Rose, sobre Jack e eu quero falar sobre por quê Jack ter morrido é, narrativamente falando, a melhor coisa que o filme poderia ter feito.
Eu já fiz uma thread sobre isso no Twitter, mas eu vou repetir tudo aquilo de novo — então, aos amigos que já ouviram esse rant presencialmente, eu peço desculpas. Vocês podem me ignorar e tomar um café, um chá, uma dose de cicuta.
Há um grande evento já contabilizado na agenda-universal-da-internet que é basicamente discutir se Jack poderia ou não ter sido salvo. Essa discussão retornou novamente, já bem gasta, e o Buzzfeed fez questão de trazer o comentário de James Cameron dizendo que não, não tinha como e tem uma enquete no final perguntando as opiniões das pessoas sobre. 58% diz que sim, que tinha espaço ali na tábua e, bem, nós sempre reiniciamos essa discussão de tempos em tempos porque não temos nada melhor para fazer. O problema dessa discussão é que ninguém fala sobre como Titanic teria sido um filme completamente diferente se Jack fosse salvo — e provavelmente seria um filme pior.
Eu não odeio Jack — pelo contrário, eu o adoro.
Mas, primeiro. Se você é uma dessas pessoas que nunca assistiu Titanic ou não lembra da história, aqui vai a breve sinopse: há este navio enorme, gigante, colossal, James-Cameronsense, chamado Titanic que realmente existiu na vida real. Nós temos, então, Jack, feito por um jovem adorável chamado Leonardo DiCaprio e nós temos Rose, feita pela Kate Winslet que tem uma Wikipedia em português muito emocionada a seu respeito e, inclusive, menciona que ela teve pneumonia na época do Titanic por conta das muitas gravações na água e que ela teve que entrar na justiça pelo direito ao descanso. Como nós toleramos a existência dos Estados Unidos, isto é algo que não consigo conceber. Rose é uma aristocrata belíssima, ruiva, com vestidos exuberantes, porém muito deprimida e que seria uma sad tumblr girl nos anos 2010. Compreensivelmente, ela está em vias de morrer de tristeza porque seu pai quer que ela case com um cara escroto, porém rico, e, bem, ela não quer. Daí temos o Jack, este adorável irlandês que está viajando na terceira classe, ansioso por uma nova vida. Afinal, América é a terra da prosperidade e tudo de bom vai acontecer no século XX, certo? Não, mas era 1912 e eles estavam muito otimistas. Então, ao decorrer do filme, Rose tenta se matar, lançando-se tragicamente no oceano, ao que Jack a salva e daí os dois se tornam meio que amigos, então namoradinhos e transam bastante até que o tal-do-noivo dela saiba do rolê, muito drama e, no meio disso tudo, o Titanic bate em um iceberg e começa a afundar, deixando um saldo dramático de entre 1.490 a 1.635 mortos, segundo a Wikipedia.
Sim, estou usando a Wikipedia para tudo. Me processe.
Daí Jack morre, Rose vive e a cena final é ela chegando em terras americanas, sem boy, sem noivo prometido insuportável, sem pai, sem nada. Quando perguntada sobre seu nome, responde que não, não se chama Rose DeWitt Bukater. Quem é essa? Uma aristocrata nojenta? Non, ela, agora, é Rose Dawson, sobrenome este retirado de Jack, o que morreu olhando na cara dela enquanto deslizava para as profundezas do oceano. Toda essa cena do nome trocado dá uma análise fantástica sobre como personagens se identificam e como os nomes têm função narrativa dentro das histórias e, ainda mais importante, sobre como mudanças de nomes indicam a maneira como aquele desenvolvimento de personagem ocorreu. Francisco Izzo já fez isso aqui em um texto que fala muito de One Piece, entre outras obras, e eu indico todo ele, mesmo que eu nunca tenha lido um capítulo de One Piece na vida.
Essa parte do final é crucial, porque a forma como eles se despedem contrasta com a forma como eles se conhecem: Rose está, literalmente, tentando o suicídio. Ela usa um vestido belíssimo, um que, honestamente, eu também escolheria para o meu suicídio: vermelho, dramático, sombrio. Oui, oui, uma garota de grande bom gosto! E nós percebemos, ao longo do filme, que Rose é uma pobre garota rica. Embora seja uma trope cansativa para nós, meros mortais acostumados com viver de cheque em cheque, Kate Winslet empresta muito carisma à sua personagem e, honestamente, o sofrimento de Rose é genuíno, sincero e nos comove. Ela é rica, mas não é esnobe ou arrogante, e não faz grande questão das joias ou dos bens que sua família possui. Ela se sente deslocada em seu meio, e está deprimida ao ponto de flertar com a morte. Se vê sem saída e considera que o final da viagem do Titanic está trazendo o último prego em seu caixão, porque seu pai vai obrigá-la a casar com aquele homem detestável e ela não tem literalmente como escapar disso. A ideia de se revoltar ou simplesmente fugir lhe é difícil: a despeito de tudo, ela é uma boa moça, gentil e comportada, e, bem, ela está em um navio, o que torna a fuga deliberada um ato bastante difícil. Então quando Rose conhece Jack, ela é uma mulher desamparada que, honestamente, precisava muito de um amigo e Jack é este raio de sol luminoso pronto para ser tal coisa em sua vida.
Jack é esperançoso, otimista, tranquilo, confiável e compreensivo. Ele é um homem jovem, cheio de projetos, quer conhecer o mundo. Ele não questiona Rose sobre seu suicídio deixando-a desconfortável, não cerca à ela de forma irritante ou intimidadora e, para piorar tudo, ele é um artista, e todo mundo sabe que nada é mais atraente do que as mãos gentis de um coração sensível dedicado à arte e à vida. Obviamente, como ele é um pobretão, a família de Rose e os relacionados não querem nem vê-lo por perto, mas Rose, como falamos, não é esnobe, faz por onde e assim os dois iniciam sua amizade que culmina em romance que culmina em tragédia. Eu sei que eu já falei disso umas duas vezes — são quatro da manhã, pelo amor de deus —, mas é importante salientar que Titanic, com essa narrativa escolhida, não é só sobre um trágico romance. É um filme de romance e é um ótimo filme de romance, destes que não faz nos perguntar por que, diabos, eles estão juntos. Eles se combinam, eles riem e ela posa nua para ele e é tudo ótimo.
Mas também é um filme sobre a jornada pessoal de Rose em busca de propósito. E é importante que Jack tenha morrido porque se ela vivesse, poderia soar como se ela tivesse convencido a viver por ele. Mas ele morre e, mesmo assim, ela decidiu viver. Ela poderia muito bem sucumbir ao oceano e morrer e nós teríamos um trágico romance a la Romeu e Julieta, mas Jack convence-a a permanecer viva, afirmando que ela viveria uma longa vida — o que é verdade, pois ela mesma nos conta a história oitenta e quatro anos depois. E isto é crucial, porque Jack, enquanto amigo e amante, dá à ela o que ela precisava para ter esperança ou amor pela vida. E não dá à ela como se tudo isto fosse uma história melosa sobre homens sendo razão-de-viver da vida das mulheres, mas de uma forma muito mais genuína. Ele foi seu grande amor — e Rose teria uma ótima vida depois com grandes amores e sabe-se lá quais seus feitos —, mas foi seu grande amor não apenas pelo sentimento romântico e porque, aparentemente, Jack transa muito bem, mas porque ele foi o raio de sol que a fez perceber que a vida existe para além da família dela e dos padrões opressivos. E quando ela enfrenta a família para ficar com ele, seja de forma direta, seja através dos encontros escondidos, ela está fazendo escolhas por si e conforme ela vai fazendo mais e mais escolhas por si, ela vai percebendo que ela pode escolher ter a vida que ela quer.
E é por isso que Rose, ao final do filme, diz que é Rose Dawson. Ela podia ter falado que não, era a Rose aristocrata, herdeira de um pomposo sobrenome. Tenho certeza que isso facilitaria a vida dela, mas ela optou por não o fazer e ter a vida que ela queria ter, sem ser controlada pelo peso de um sobrenome em uma sociedade altamente hierarquizada. Então todo o filme gira em torno de escolhas delas: ela escolheu se matar, ela escolheu continuar vendo Jack, ela escolheu furar as proibições, ela escolheu tirar a roupa e pedir para ser desenhada e ela escolheu viver. E Jack a acolhe em cada uma das escolhas porque, bem, ele é um artista que quer beber a vida e Rose é uma garota fantástica, e ele se sente imensamente sortudo de tê-la por perto.
Lembro que minha professora de Contemporânea na UFJF disse que Titanic era uma metáfora da divisão de classes no Reino Unido do final do século XIX e da transição do século XIX para o XX e, isso, no meu ponto de vista, torna as coisas ainda mais interessantes. O navio é dividido em um sistema fortemente hierarquizado: nós temos da primeira à terceira classe, na qual a primeira é preenchida por aristocratas que se vestem a la 1890, enquanto a terceira classe é, bem, nós, os meros mortais que não temos onde cair mortos. O navio, para além disso, está indo para os Estados Unidos da América — este país idealizado, idílico, a terra das promessas. Para vários dos personagens, o American Dream é real: tanto Jack pensa em como será fantástico tentar a sorte na América, quanto o casamento prometido de Rose com o herdeiro do aço vai sedimentar a posição deles e, quem sabe, elevar a família mais ainda. Este sistema é bem característico do século XIX e eu adoraria citar referências bibliográficas sérias aqui sobre isto, porque juro que existe, mas eu estou com muito sono e só resta a vocês confiarem em mim.
Mas é interessante pensar que o navio afunda, levando junto consigo uma boa parte de toda essa galera, seja primeira ou terceira classe, porque mesmo que você tenha conseguido um bote sendo uma pessoa muito rica, ainda há chances de ter morrido de hipotermia antes do socorro chegar. Então toda a tragédia foi um grande bilhete de loteria no qual os ricos sortearam mais vezes, mas também tinham risco de morrerem tal quais os pobres que, por sua vez, tinha menos chances ainda, vide andares e cabines que sequer foram abertas na terceira classe. Em termos metafóricos, nós podemos pensar no naufrágio do Titanic como também um naufrágio do sistema específico de classes sociais operante no Reino Unido como forma única de ditar o poder naquele contexto. Pois o século XX, século este que se inicia, será marcado pela ascensão e consolidação dos Estados Unidos da América como a grande potência do mundo, com um outro sistema de classes que não necessariamente condiz com o britânico. Afinal, os Estados Unidos são “new money” enquanto o Reino Unido é “old money” e, sim, há uma diferença de como isso é tratado. É claro que o naufrágio de Titanic na vida real não é uma metáfora de nada, mas o filme pode ser analisado e pensado dessa forma e, particularmente, eu gosto desta forma de pensar porque me faz traçar a Rose não apenas como uma garota de dezessete anos que resolveu mudar de identidade e de vida após um grande amor e um evento traumático, mas também como uma representação de mudança de valores de si própria e, quiçá, da própria temporalidade.
Rose entrou naquele navio estando no século XIX. Ela tinha uma postura, um vestido, uma história de vida completamente atrelada ao contexto do século XIX. Mas ao sair do navio e pisar em terras americanas, ela é uma pessoa do século XX. Ela tem um sobrenome diferente, ela não é mais uma aristocrata, mas uma simples mulher de classe trabalhadora que, provavelmente, vai trabalhar pelo sonho americano, e ela está pronta para encarar o próximo século do jeito que ele precisa ser encarado, já com uma outra forma de ver o mundo. Por isso que a morte de Jack Dawson é fundamental: se ele sobrevivesse, não conseguimos saber ou perceber pelo quê ela está viva ou pelo quê ela mudou a identidade dela. Se ele estivesse lá, ela mudar o nome não seria uma grande coisa, porque é algo que mulheres casadas fazem sem serem questionadas. Se ela está viva, nós poderíamos simplesmente ler a história como se ela tivesse decidido permanecer viva porque agora ela tem um namorado. Porém, com ele fora do caminho, é objetivamente fácil perceber como as motivações dela mudaram e como ela se reencontrou e, portanto, encontrou um propósito de vida e, por este, decidiu que valia a pena viver.
Titanic, portanto, é uma história de amor — não apenas do amor romântico, mas também por si. É sobre como sim, Rose encontrou um ótimo amante, mas este amante também a inspirou e a fez perceber que ela vale a pena e que ela tem poder para fazer as próprias escolhas e, no fim, é sobre isso que inspirações são. Elas devem permanecer em nossos espíritos mesmo depois que se forem, porque senão não são inspirações, são apenas como rodinhas de bicicleta. Ele foi ótimo, e ele cumpriu seu papel, e agora ela pode andar de bicicleta livremente fazendo pirueta porque foi capaz de absorver este amor, entendê-lo e aprender com ele. Ela aprendeu com Jack e isto é incrível porque é assim que aprendemos a nos relacionar e a nos curar. Por isso que é uma bobagem quando dizem que você não pode se relacionar com ninguém se estiver fodido de cabeça. Não, não, porque conexões emocionais e sociais também são momentos de cura. E é muito bonito como Rose lidou com a própria depressão e conseguiu achar espaço para se permitir brincar e amar, e ser amada de volta.
E, honestamente, os vestidos de Rose são todos lindos. *chef’s kiss*
Agradeço a paciência com meu longo e atrasado rant sobre um filme de vinte e tantos anos atrás. Mas eu estou muito feliz por ele: Titanic me deixa feliz (o filme, não a tragédia) e, de coração, eu sinto que nós precisamos aprender a apreciar finais agridoces ou simplesmente trágicos quando a narrativa pede por isso. Às vezes, é na morte que tiramos as melhores lições de vida, acredito eu.
Diga às vozes da sua cabeça que está tudo bem não assistir o filme trendy do momento, exatamente agora. Caso resolva ver Avatar II depois, o filme estará no Stremio ou algo assim. Qualquer coisa, pergunte à mim: eu devo ver o filme em breve e poderei dar minhas opiniões extremamente profissionais — afinal, eu fiz três disciplinas de Cinema na faculdade, logo eu sou tão gabaritada quanto qualquer crítico fuleira do Omelete que acredita que Thanos é realmente um excelente vilão. (Ele não é. Esta newsletter é anti-Thanos.)
Um cheiro,
Luna.
Descrição: vista de cima, a sombra de um enorme peixe nada calmamente nas águas do oceano. À direita, na direção noroeste, um homem rema com seu pequeno barco em tons esverdeados, indiferente ao enorme animal ali embaixo.
amei muito a análise e eu nunca nem assisti Titanic inteiro!!!!!! parabéns xu
Antes de mais nada, gostei da arte.... me fez lembrar daquele clássico do Hemingway: "O velho e o Mar".
Agora, a texto: Muito bacana a análise, nunca tinha visto nada parecido e fez todo sentido.... Não sou fã de Titanic porque não sou fã de filmes de romance de modo geral, mas isso trás uma nova perspectiva pro filme que torna ele mais interessante (e sem sombra de dúvida, o filme é muito melhor com a morte do Jack, e a Rose um personagem infinitamente mais interessante devido à morte dele, mas eu vou para sempre defender que o Jack deveria ter tentado subir na taboa, eu ficaria mais feliz em ver ele tentando subir e não conseguindo, ou ele forçado a descer da taboa porque ela afunda com o peso dos dois)....
As vozes da minha cabeça nunca me forçam a assistir filmes trendy, na verdade elas me falam que quase nenhum filme presta... as vezes eu ignoro as vozes e frequentemente me arrependo, elas estavam certas....