A Minha Experiência Lésbica com Barbie (2023)
#20 • vamos falar do hype da hiper-feminilidade, capitalismo e o fato de que Elle Woods é lésbica.
This Barbie is not a reviewer.
Is just a shitposter.
E esse texto não será uma resenha do filme, e não dirá se o filme é bom ou não. Esse texto será só uma mescla do hype, do caos e das piras na minha cabeça que vieram ao assistir Barbie. E pode haver spoilers. Sempre pode haver spoilers.
Há algo nos filmes hiper-femininos que me atrai: Legalmente Loira, As Patricinhas de Beverly Hills, Barbie. Eles são todos similares: suas protagonistas geralmente são loiras, usam muitas roupas cor-de-rosa e a obra inteira se torna uma celebração aos atributos considerados femininos: o formato das unhas, a maciez dos cabelos, o intelecto que brilha inesperadamente em meio à um julgamento de um homicídio, o bom humor, a elegância e a forma como ela sabe todas as marcas italianas de cor e salteado e, no entanto, ainda é capaz de pensar criticamente! E há algo muito esquisito que costuma ocorrer é que… são obras muito heterossexuais. Elas celebram o binário do homem e da mulher, e a mulher enquanto posição cintilante, brilhante, perfeita. E, ao mesmo tempo, de forma acidental, a protagonista acaba meio que parecendo uma high femme lesbian, como se homens, para essas protagonistas, não fossem interesses românticos de alguma valia, mas somente obstáculos, amigos convenientes ou apenas parceiros românticos para ocupar espaço no script.
Não, sério. Se você assiste Legalmente Loira e acha que a Ellie é 100% heterossexual e conseguir me convencer disso, eu vou me jogar da janela e desistir da vida porque não tem cabimento. Aquela ali, eu tenho certeza absoluta, ainda vai descobrir que homem na vida dela era só para dar check list nas coisas que uma patricinha californiana deveria ter na vida. Só.
Eu queria genuinamente entender esse processo. Então eu fui na internet tentar entender isso. Eu queria entender porque eu assistia o filme Barbie pensando “nossa, ela podia muito bem ser uma lésbica” e, ao mesmo tempo, tudo era tão hetero e, ao mesmo tempo, tudo era tão questões de gênero que temos que discutir e, ao mesmo tempo, tudo era tão Feminismo 101 e, ao mesmo tempo, tinha umas sacadas meio dolorosas e-
O que está acontecendo? Era para ser um filme cor-de-rosa. É um filme de Barbie, pelo amor de deus.
Daí eu fui lá e li um texto sobre Barbie. Li outro sobre a aesthetic hiper-feminina. Aí assisti o vídeo de Mina Le, com quem costumo concordar em várias coisas, exceto quando ela gosta de Heartstopper. E eu estou tentando pensar. Silêncio, há um cérebro feminino pensante aqui.
Certa pessoa querida comentou casualmente nas redes sociais que considerou assistir Barbie enquanto lésbica uma experiência alienante e eu apreciei tanto o uso da palavra que serei obrigada a cometer um certo plágio. Alienante. De certa forma, é por isso — compreendo agora — que eu gosto tanto de assistir esse tipo de filme. Não é porque, como em alguns textos que li, me sinto celebrada e validada pelos meus gostos femininos. Legalmente Loira não me faz me sentir melhor em nenhum aspecto da minha vida. Para mim, é uma produção inteiramente escapista, um vislumbre de uma vida completamente diferente à qual nunca pertencerei. É uma fantasia. Para várias garotas, As Patricinhas de Beverly Hills é um retrato da adolescência dos anos 1990, para mim é uma fantasia do começo ao fim e eu assisto pelo mesmo motivo que eu assisto animados da Disney: eu quero esquecer que o mundo lá fora existe, e me entreter com garotas cujo maior problema é serem subestimadas pelos homens com os quais se importam.
Porém—
uma coisa é a minha experiência [pois eu aprecio a experiência da alienação], outra é a obra em si e como ela reflete aquelas questões e, o horror dos horrores, em como ela contribui para a percepção daquelas questões.
Coisa horrível. Arte ter que contribuir com algo.
Sou contra.
[mas sigamos.]
Certa coisa me chamou a atenção no texto que eu li e no vídeo de Mina Le.
Ambos tratam a feminilidade como algo, geralmente, positivo. O texto muito mais do que o vídeo de Mina Le que traz mais contrapontos, mas ambos trazem uma perspectiva, em geral, mais animadora sobre as estéticas femininas serem formas de expressão pessoal das mulheres, de uma forma de nós nos permitirmos sermos femininas enquanto pensamos. Eu falei disso um pouco mais cedo, lá em cima. É como uma versão um pouco distorcida, cor-de-rosa de todas as notícias de Dia da Mulher que mostram mulheres nas mais diferentes profissões e ficam: olha, mas ela não abre mão de ser mulher! E o “não abrir mão de ser mulher” significa, em geral, ter as unhas feitas ou gostar de maquiagem.
O hiper-feminilidade é um extremo: é uma distorção completa, uma transgressão do realismo. Ninguém vive em uma realidade de Elle Woods onde tudo é de plástico e cor-de-rosa, mas ela vive, pois está em um filme e isso é permitido. E faz sentido esse revival, especialmente após o grande pico da pandemia em 2020: se tem uma coisa que não queremos é o peso da realidade, é sentir o mundo em nossos ombros dia após dia. O colapso climático, as crises políticas, a ascensão do fascismo, todas essas coisas não são nada bonitas e eu acho, particularmente, que faz sentido que as pessoas, sobretudo jovens que ficam o dia inteiro no TikTok, se refugiem para um mundo onde tudo é colorido, brilhante e divertido. E a hiper-feminilidade tem um quê de rococó: ela é frívola, fútil e feita para ser exagerada. E, para mim, é divertido vê-la expressa em filmes porque, como eu disse, são como fantasias para mim.
Mas eu tenho um problema quando passamos para a vida real.
Descrição da imagem: Cena do filme Barbie (2023). A Barbie Estranha, toda rabiscada, com cabelo mal cortado, mostra à Barbie Estereotipada (desfocada) dois sapatos que ela terá que escolher: um scarpin, sapato de salto alto, cor-de-rosa e um papete marrom.
Barbie teve esse mesmo problema: e isso é muito engraçado, porque é literalmente a Escolha de Matrix dela. Ela, diante da Barbie Estranha — que é interpretada por, curiosamente, uma atriz abertamente lésbica —, tem que escolher entre o sapato de salto e o papete para iniciar a sua jornada no mundo real. E eu acho isso curioso porque embora Barbie seja um filme que celebra o binário homem-mulher, Barbie-Ken, o mundo plástico em oposição ao mundo concreto, ainda assim tem algumas coisinhas aqui e ali que ressoam com a experiência de alguém que acha tudo isso uma alucinação das grossas e quer, de algum jeito, escapar.
Só que é impossível escapar. Barbie vai embora da Barbieland por escolha, mas a gente não pode escapar do nosso mundo porque ele não é só uma realidade material e exterior, não é só casas e prédios e ruas, mas é também ideias, valores, sentimentos e é impossível fugir de nós mesmos e das nossas próprias histórias. Marx falou algo sobre isso, mas eu não vou checar isso agora. Mas saiba que Marx falou sobre isso quando ele fala da diferença entre estrutura e superestrutura.
E eu tenho um problema não exatamente com os filmes — embora eles promovam essas ideias e sejam os grandes ícones celebrados pelos anos —, mas com a forma como as pessoas tratam esses conceitos de feminilidade como se fossem… subversivos.
Essa é uma coisa que eu acho difícil de engolir.
Em Legalmente Loira, Elle Woods é censurada por ser como é: loira, cor-de-rosa, feminina, fútil, divertida. Ela é uma típica patricinha de California que se preocupa mais com moda do que com “coisas sérias” e o pontapé da sua jornada é quando ela é dispensada pelo namorado que, ao passar em Direito em Harvard, diz que ele precisará de uma Jackie, não de uma Marilyn se ele quiser brilhar na futura carreira dele. É uma coisa muito babaca de se dizer, e é também uma fala que emblematiza o ponto do filme: a eterna disputa entre a mulher loira-e-burra versus a mulher morena-e-inteligente, a Madalena e a Madona, a puta e a santa, a Costa Oeste e a Costa Leste dos Estados Unidos, a que é para namorar e a que é para casar. Em um grande resumo, o filme ilustra bem o contraste entre Elle e Vivian, a atual namorada do ex dela, usando esses paralelos de formas diferentes e é um filme muito eficaz nisso. Ao final, como sabemos todos, o filme bota as duas lado a lado, celebrando suas diferenças e suas similaridades, não como rivais, mas como amigas (ou namoradas, se você quiser pensar dessa forma! Eu me dou o direito de fanficar!) e eu considero essa mensagem muito feliz.
O rolê todo é que o filme funciona como uma fantasia para mim porque a coisa toda de ser julgada por ser feminina simplesmente… não é real.
Explico.
No vídeo de Mina Le que linkei mais cedo, ela diz que crescer enquanto mulher na década de 2000 era, de certa forma, ter sua feminilidade suprimida. E eu- espera, o quê? Desculpa, eu não quero passar por cima das experiências de outras pessoas, mas eu realmente não vou conseguir achar que uma mulher está sendo séria quando ela fala que a “feminilidade” é “suprimida” em qualquer época. Não nessa realidade, não nesse mundo. Sim, a Elle Woods? Pode ser. Mas ela vive em um mundo ficcional, na própria Barbieland onde as pessoas se dividem entre Jackie, Marilyn e alguns duvidosos Ken. Paris Hilton era chamada de burra? Sim, mas não era oprimida por isso. Existe, de fato, o estereótipo da loira burra? Sim, mas não é como se fosse a discussão mais relevante em terras brasileiras e não vou trazer isso para cá.
O meu ponto é que feminilidade não é meramente sobre gostar de coisas cor-de-rosa ou de botar glitter na capa do celular ou de apreciar minissaias de plástico. Feminilidade é um conceito que vai muito além, e define quem são as mulheres lidas como tal e quem são as menos-mulheres, as mulheres que não se esforçam o suficiente para serem mulheres. E eu acho importante falar disso porque eu sinto que esse debate fica muito na mão de mulheres heteros e, bem, eu preciso ser honesta: é impressionante como mulher hetero é burra sobre gênero e isso sou eu que estou falando, eu que sou abertamente ignorante sobre esse tema.
Descrição da imagem: Cena do filme Barbie (2023). A Barbie Estereotipada e o Ken se olham de forma significativa. Estão ambos vestidos de rosa-bebê em um cenário igualmente rosa, em vários tons.
Se você perguntar “o que é ser feminina?” no YouTube, você vai achar uma porção de vídeos sobre como ser feminina não é sobre usar vestidos ou cabelos compridos, mas também ter uma série de comportamentos: deve ser delicada, comportada, preocupada com a própria imagem, saber falar de forma ponderada, não falar palavrões. Se você fizer a mesma coisa no Tiktok, será a mesma coisa em vídeos mais curtos que te ensinarão as roupas certas, o tom certo de fala, o jeito certo de se sentar à mesa, a maquiagem certa. Enfim, feminilidade — concordamos todos, eu, você, as feministas, os cristãos e os usuários de 14 anos do TikTok que ficam o dia inteiro consumindo material antifeminista — não é sobre só estética, mas é um conjunto de valores, comportamentos, atributos, significados que são atribuídos à mulheres. Sim, tudo isso é traduzido de forma visual através dos vestidos rodados, dos sapatos de salto, dos batons vermelhos. Mas, novamente: o visual é uma parte, mas não é tudo.
E eu quero trazer essa discussão porque eu acho impossível falar sobre Barbie, Legalmente Loira, hiper-feminilidade e o “empoderamento” da mulher sem falar sobre o quê, afinal, é esse rolê de ser feminina.
É possível afirmar que a feminilidade não está sendo abraçada? É realmente possível dizer que era necessário um Legalmente Loiro para que saibamos que está tudo bem usar saltos altos, vestir saias justas e gostarmos de maquiagem? Eu tenho minhas dúvidas, porque nenhuma dessas coisas já foi, em algum momento da história, colocada como negativa para mulheres. De modo algum: é esperado de mulheres que usemos saltos altos no trabalho. Esses elementos estéticos que são tão celebrados nos filmes não são e nunca foram subversivos e eu acho esquisito quando algumas pessoas tratam como se fossem. Ser uma mulher feminina nunca foi algo anti-sistema, e a menos que você viva em uma situação muito específica, é muito difícil que você tenha sido oprimida ou suprimida por ser feminina algum dia na sua vida se você for uma mulher cisgênero.
Isso não quer dizer que os filmes sejam ruins ou que maquiagem seja uma droga. Não é sobre isso — e é a parte mais aborrecida, porque quando você levanta esses questionamentos, sempre tem um infeliz no Twitter ou algo assim dizer que “mas é uma questão de escolha pessoal” e. Não. Não é uma questão de escolha pessoal. Isso é coisa de gente que acha que todos os nossos gostos são moldados em um vácuo, imunes ao sistema capitalista, patriarcal e pautado em racismo, entre muitas outras coisas. Nem mesmo o seu gosto pessoal em coisas anti-sistema deixa de ser pautado no sistema em si: se não houvesse um mundo contra o qual se revoltar, será que punks ainda existiriam?
No fim, tudo o que gostamos e o que não gostamos existe dentro de um mundo — nossas respostas positivas ou não, as discórdias e os consensos, e as tentativas de conciliação, todas elas têm no mundo um palco caótico onde se dão e, às vezes, se contradizem e, sabe? C’est la vie!
Barbie é um filme subversivo? Dificilmente: ele é mainstream, e se conteve cuidadosamente. É um filme com uma bilheteria bilionária e nada bilionário é subversivo. Barbie é uma experiência interessante? Sim, de certa forma. É avançado para certas pessoas? Também. Mas é extremamente básico para outras pessoas? Também estaria correto.
Várias mulheres terminaram seus relacionamentos após assistirem Barbie e descobrirem que os seus respectivos parceiros eram uns lixos humanos que não os valorizavam e respeitavam. Ótimo. E, ao mesmo tempo, Barbie é um filme que embora discuta gênero e as opressões relacionadas, e a impossibilidade de se ser uma mulher em um mundo patriarcal, também não é um filme que vai avançar muito a discussão sobre gênero e isso se deve à várias razões: não há tempo o suficiente, Greta Westwood teria que pensar em um roteiro todo diferente, os executivos provavelmente não iam querer e, talvez, seja impossível aos estadunidenses pensarem nessas coisas. Mas também: discutir gênero não é só discutir por que mulheres são odiadas, mas também quais são os conceitos que definem o que é ser feminino e o que é ser masculino e esses conceitos são muito mais complicados do que discutir quem é Barbie e quem é Ken.
O feminino é odiado porque é intimamente relacionado ao ser mulher, mas uma mulher feminina é o mínimo necessário para se transitar nessa sociedade sem receber mais represálias. Pergunte à qualquer sapatão, dessas que corresponde aos estereótipos, como é viver em uma sociedade sem atender ao chamado do feminino: não será a melhor vida do mundo. Elas não vão lhe dizer que odeiam serem como são — a comunidade LGBT se reveste muito de orgulho em geral —, mas não é uma vida fácil. E se você perguntar às feministas, muitas delas vão dizer que a feminilidade é, per si, uma opressão: feministas radicais, em especial, vão dizer isso e eu não vou discordar inteiramente, mas, novamente, eu sinto que a gente cai em um limbo: se a feminilidade é uma opressão por si mesma, então o que resta a nós? Como elaboramos os nossos valores, os nossos atributos, o nosso universo?
Na ficção, o recurso para fugir das donzelas-em-perigo — o mais clássico arquétipo literário da feminilidade — foi criar personagens com “traços masculinos”: são mais duronas, falam palavrão, bebem cerveja, não são como as outras garotas. Elas são bro e este é outro buraco obscuro no qual também não é bom cair, porque se tem uma coisa com o qual este buraco está cheio é de misoginia pura e gratuita. A gente pensa em um mundo binário e se a feminilidade é ruim, logo a masculinidade soa atraente porque é a outra única possibilidade. O problema é que, bem, também é escroto e a gente fica em uma sinuca sem bico absolutamente estúpida.
Daí feministas radicais vão dizer, bem, por isso que falamos que temos que abolir o gênero e, tá, eu entendo, mas eu não vejo um plano para isso a longo prazo, nem a extremamente longo prazo. Eu não conheço, até hoje, nenhuma sociedade que não classifique as pessoas em gêneros. Há várias sociedades que pensam em gêneros para além do binário e é muito legal falar desses exemplos, mas eu gostaria de ser mais factível em relação a vivermos em uma sociedade pautada na ideia cristã e ocidental de como o mundo deve funcionar: o que fazemos sobre isso aqui? Porque eu não vivo em uma sociedade que compreenda o terceiro sexo como determinados povos indígenas ou que pense em cinco gêneros como judeus. Eu vivo em um mundo no qual eu cresci aprendendo que mulheres são mulheres e homens são homens, e que é impossível sair dessa dicotomia. E que ser mulher era sentar com as pernas juntas, ser comedida e comportada, nunca falar alto e não ser gentil quando o seu homem está te corneando com outras cinco. E ser homem é poder abrir as pernas, é poder falar mais alto, é poder pegar cinco e ninguém falar nada sobre isso. E isso tudo junto com aspectos sociais e políticos envolvendo salários, cotas de gênero, denúncias de assédio sexual no trabalho e tudo o mais.
Eu não sei se é possível abolir o gênero nesse contexto e eu não sei nem sequer se é a melhor ideia. E eu não gosto de feministas radicais. Já escrevi muito sobre isso, no meu falecido blog. Não vai ser agora que vou retomar essa discussão.
Barbie celebra a feminilidade? Não sei dizer ao certo: acho que sim, mas também acho curioso que a Barbie renegue os sapatos altos e prefira as papetes bege. Acredito que houve, nessa escolha, uma espécie de mensagem codificada e pequena diante do filme como um todo, mas uma mensagem sobre como ela renegou alguns desses símbolos em busca de si mesma, de entender a si mesma enquanto pessoa, não apenas Barbie, não apenas um ideal de hiper-feminilidade em um mundo que é tão cruel com mulheres. Então o filme se contradiz? Sim e não. Mas Barbie está, certamente, na lista imaginária de ícones de pessoas que celebram o hiper-feminino, a estética bimbo, os vários tons de rosa, as presilhas de plástico e as coisas brilhantes e é por isso que eu o arrasto para esse debate. Porque esse ideal é celebrado, mas não sinto que esse ideal é pensado de forma crítica como deveria ser.
Temos seis páginas de texto e eu até agora não mencionei que, para além disso tudo, todo esse conceito de feminilidade — que está em Legalmente Loira e em Barbie, mas também está em todas as comédias românticas, nas revistas Capricho dos anos 2000 e nas novelas da Globo — não é um conceito barato, nem emocionalmente, nem financeiramente. Primeiro, não precisa de muito para perceber, em buscas simples na superfície do YouTube e no TikTok, que ser feminina significa ser magra, ser branca e ter dinheiro. O filme Barbie seguiu a tendência já existente em várias vertentes no TikTok e introduziu atrizes gordas e negras — até mesmo para representar algumas bonecas Barbies que existiram, mas isso é atípico, um band-aid em um conceito que é historicamente exclusivo em relação às mulheres que não são vistas como mulheres de fato. Diversas mulheres já procuraram usar o conceito para se “empoderar” enquanto hiper-femininas, mas ainda assim a feminilidade mainstream pressupõe certas coisas. Ser feminina é não ser sapatão e, portanto, ser hetero. Por isso, a Barbie Estranha fica onde ela está. Como eu disse, é extremamente sintomático que a atriz seja lésbica: foi uma escolha bizarramente adequada considerando toda a lore do filme. Ser feminina implica em gostar de homens — e é isso que as revistas, as novelas e os filmes nos ensinam. É por isso que, em relacionamentos entre mulheres, os homens se intrometam: quem é o homem da relação? Quem é o que tem as bolas? Porque ser uma mulher é ter uma vivência atrelada ao homem — e daí o nome daquele livro de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo. A mulher é um gênero que não existe por si: é a extensão incompleta do homem segundo a interpretação de grandes filósofos.
Descrição da imagem: Cena do filme Barbie (2023). Na frente de várias Barbies diferentes vestidas em macacão cor-de-rosa, uma Barbie negra com a faixa “Presidente” ergue o punho e assume uma expressão de luta e vitória. Atrás, percebe-se que as Barbies estão sorrindo e erguendo os punhos.
Portanto, ser feminina é ser hetero. É ser magra — mulheres gordas não são atraentes, elegantes ou desejáveis o suficiente. Elas são comparadas a animais como baleias e, portanto, não são femininas o suficiente. É ser branca — e isso se reflete, inclusive, na trajetória histórica da luta feminina negra pelos direitos civis que sempre foi muito separada da luta feminina branca. Há um discurso conhecidíssimo e maravilhoso, de Sojourner Truth, de 1851. Há uma transcrição aqui e é bem curtinho, mas é excelente porque, com uma fala, Sojourner põe em cheque as diferenças entre o tratamento dado às mulheres brancas e às mulheres negras. E se não se engane: só uma delas é o exemplo de feminilidade. A Barbie Estereotipada é interpretada por Margot Robbie, que é uma querida, mas ainda é tão branca quanto o sabão em pó. Elle Woods é branca. Cher é branca. Todos esses filmes que amamos: O Diário da Princesa, O Diabo Veste Prada, Delírios de Consumo de Becky Bloom, De Repente Trinta — são protagonistas brancas. São protagonistas magras. São protagonistas heteros. São protagonistas femininas — e se não completamente femininas, são corrigidas pelo fantástico recurso do makeover: que o diga O Diário da Princesa no qual a menina esquisita vira Anne Hathaway, radiante, belíssima e feminina aos moldes reais.
Claro que há tentativas de escapar a tudo isso. Mulheres negras, mulheres gordas, mulheres trans, todas elas estão tentando se encontrar em um mundo hostil e muitas delas recorrem aos símbolos de feminilidade, cada uma por suas razões. São símbolos negados à elas pela ficção e pela mídia, e não é esquisito que muitas delas vejam a feminilidade como um sonho de princesa que, uma vez na vida, deveria pertencer à elas e, sim, é positivo que Barbie tenha tentado um pouco disso com as personagens secundárias que pertencem à essas minorias. O meu questionamento é que não sei, ao certo, se abraçar tudo isso dessa forma vai resultar em uma feminilidade melhor. A gente discute muito sobre masculinidade tóxica, mas eu tenho minhas dúvidas se a feminilidade é menos tóxica no geral. E eu tenho ainda mais dúvidas se é possível existir uma feminilidade melhor, inclusiva, disruptiva, subversiva em uma sociedade capitalista. Porque eu não sei se você reparou, mas: se você quer ser feminina, é melhor abrir a sua carteira.
Pense em quanto uma mulher tipicamente hetero, feminina, convencional e dedicada à própria aparência gasta por mês. Pense em quanto custa a manicure, a pedicure, a limpeza de pele. Pense nas sobrancelhas feitas por profissionais, no cabelo que deve ser estar sempre bem cortado e macio, no preço do shampoo, do condicionador, do creme de pentear, do creme de hidratação, do serum, do mousse. Pense em quanto custa para uma mulher estar sempre bem maquiada: ali, numa Margot Robbie numa cena qualquer, temos base, pó, máscara de cílios, sombra, delineador, batom, primer, blush. Pense nos custos de uma pele bonita: aqui precisamos de esfoliante, hidratante, sabonete apropriado, protetor solar. Precisamos de apetrechos, de produtos, de profissionais dedicados. A indústria da beleza é bilionária porque estar constantemente bonita — ou feminina — requer manutenção diária, e requer dinheiro. Muito dinheiro. Ser feminina custa caro. Ter roupas agradáveis, ter os sapatos certos, a lingerie, a bolsa, tudo isso custa dinheiro. Elle Woods paga para fazer as unhas naquele salão. Barbie não tem que pagar nada porque ela é uma boneca — mas a Margot Robbie já pagou muita manicure e sobrancelha nessa vida, você pode apostar. A estética da feminilidade, portanto, está atrelada diretamente com o quanto de dinheiro você tem: quanto mais você tem, mais condições você tem de cumprir essa expectativa social em cima do seu gênero.
É um ode ao consumismo, se você parar pra pensar. Compre, então será uma mulher de verdade. Poderá performar o ser mulher, como diria Judith Butler. E se você pesquisar por essas coisas no TikTok, vai ver que eu não estou louca: a estética do Barbiecore é uma estética que exige coisas de plástico, coisas super cor-de-rosa e um monte de coisas que provavelmente demoram trinta mil anos para se deteriorar no mundo. A feminilidade — ou essa performance da feminilidade em termos visuais — não apenas custa dinheiro à mulher, mas movimenta uma economia bilionária que tem custos sociais e ambientais para o mundo inteiro. Porque se você pensar mais ainda: ora, quantas marcas de maquiagem são testadas em animais? Quantas roupas, que são compradas todo ano em ritmo frenético, são feitas por outras mulheres escravizadas? Quantas dessas coisas viram, no final do dia, um amontoado de lixo que é despachado para países periféricos que precisam lidar com tudo isso em meio às próprias circunstâncias já complicadas? É possível falar de uma feminilidade inclusiva e agradável e que seja boa para as mulheres sem falar sobre como isso tudo, atualmente, é imensamente prejudicial ao mundo como um todo?
Não sei. Eu não sei se é possível escapar a isso em um mundo como o nosso.
No fim, talvez — temo dizer isso — a gente precise de uma crítica mais radical que, infelizmente, Barbie não tem como oferecer. Porque a única maneira, acredito eu, de oferecer essa crítica radical aos gêneros e às expectativas sociais, às atribuições de valores e atributos, e aos significados embutidos em cada elemento estético é não nos deixar esquecer que cada uma dessas coisas existe em um mundo capitalista que redefiniu conceitos já existentes e atrelou-os como base do próprio mundo. E é por isso que não dá para falar de luta feminista sem falar de anticapitalismo, assim como não dá para falar de racismo, homofobia, capacitismo ou direito à terra sem falar sobre como o sistema capitalista está embutido em cada uma dessas questões.
Não significa que não existisse essas coisas antes do capitalismo. Eu não sou uma tola: eu sei que a mulher era oprimida muito antes do capitalismo existir. Mas uma coisa incrível da sociedade capitalista é o talento dela de redefinir e compactar esse imenso amálgama de opressões sociais em uma estrutura tão bem consolidada que opera por anos, fazendo parecer que funciona por milênios, impossível de ser abatida. E é por isso que não vai haver nenhum filme de Hollywood que consiga dar essa mensagem radical — porque a radicalidade não está em só dizer que mulheres merecem respeito, mas também em dizer que o respeito e a dignidade humana só vão poder existir por inteiro em uma sociedade que- não é essa.
Definitivamente não é essa na qual vivemos.
Mas tem que existir alguma possibilidade. Não é possível. Tem que existir. É para isso que existimos: para servir de resistência e lembrar a todo mundo que não- não somos obrigadas a viver sorrindo diante desse mundo.
É isso.
Bebam água. Assistam seus filmes favoritos. Um cheiro,
Luna.
Descrição da imagem: Ilustração Digital. Pessoa de camisa branca e calça, com cabelo curto e verde, sorri para frente, enquanto está sobre uma forma estrelada cor-de-rosa e brilhante e fundo azul. Ao seu lado, a frase “This Barbie is a sapatão” aparece em branco.
Os poréns, é claro:
1 Eu escrevi um conto! É para o concurso da Amazon: Um Conto Inesquecível e eu fiz tudo em basicamente seis horas, e quase não teve revisão — o tempo era corrido e minhas amigas fizeram o melhor que puderam! Mas eu estou feliz que eu fiz e está disponível na Amazon por apenas R$ 1,99. É meio YA, meio reflexão, com uma premissa que eu queria fazer já tem algum tempo. É bem adolescente — e eu acho que gostaria de ter lido isso quando era adolescente. O link está aqui e você pode comprar, ler, compartilhar, resenhar e dizer se achou bom, ruim ou apenas mediano! E eu não irei atrás de você e seus cachorros em nenhuma hipótese!
É louco né? Barbie fez muito pouco e ainda foi muito mais do que qualquer outro filme de Hollywood já fez pelo feminismo.
Particularmente tem umas coisas que me pegam muito porque eu adoro hiperfeminilidade e até performo quando a paciência permite. Nos demais 85-90% nem tanto. Aí eu pergunto: o que é feminino? Por quê? Quem falou? Para mim algumas coisas são para os dois gêneros tipo falar palavrão, ter uma carreira profissional e a palavra presidente (mas se quiser falar presidenta pode). Mas será que é mesmo ou eu só penso assim porque eu sou uma esquisita privilegiada?
Muitas questões, mas vou parando por aqui porque meu overthinking vai longe.
Obrigada pelo texto!