Esse texto tem uma retificação em relação à versão que foi para o e-mail: eu chamei Miley Cyrus de mulher quando, na verdade, ela é uma pessoa não-binária segundo as próprias declarações. Eu adaptei o texto para contextualizar essa correção — lembrando que a identidade de Miley não impede que ela sofra o impacto da misoginia em sua vida diária. Espero que aproveite a leitura, tho ♡
Esse texto é um frankenstein: começou no pico de inverno, vai terminar já na primavera.
Cabe a você descobrir qual é o ponto do remendo.
Há algo de pernicioso em completar os trinta anos de idade.
Igualmente, há algo de formidável. De mundano. É um evento grotescamente ordinário: acontece todos os dias, com todos nós, os felizes e infelizes que passaram dos vinte-e-nove anos de idade e, eventualmente, irão descobrir a idade das balzaquianas. É só um número: qual é a diferença, afinal, dos trinta anos em relação aos vinte-e-nove ou aos trinta-e-um? Ora, é só mais um ano neste planeta, com significados atribuídos pelo ser humano e não pela natureza. É só um número.
Está tudo dentro da sua cabeça. Tudinho.
As suas paranóias, as suas ansiedades, as suas neuroses, piras, angústias e pensamentos atravessados pelos preconceitos, comentários de tias e da Forbes quando ela publica aquele infame Under 30.
Está tudo dentro da sua cabeça.
Até não estar mais.
Esses dias, eu [re]assisti Tick Tick Boom!, o filme musical com o Homem Aranha nº 02 que tem na Netflix. Não sei se eu deveria ter revisto esse filme: estou sensível, acho eu, para qualquer coisa envolvendo musicais, aniversários e a percepção de que o tempo está correndo à sua revelia. Porém, igualmente, eu acho que deveria ter revisto sim, porque todas as piras de Jonathan são mais ou menos as minhas piras: ele se acredita genial, intenso, maravilhoso e que pode propiciar à Broadway um musical que vai falar algo que importa, mas que isso precisa ser feito logo, pois ele está fazendo trinta anos!, e aos trinta ele quer ter feito alguma coisa. Ele quer ser, afinal, um compositor que trabalha de garçom, não um garçom com um hobby. E eu entendo ele. Se tem uma coisa que eu entendo na vida, esse alguém é ele, pois se tem uma coisa que eu entendo é essa neura bizarra de que precisamos conseguir as coisas enquanto estamos nos nossos, no máximo, vinte anos.
Precisamos alcançar as estrelas, senão elas vão desaparecer assim que soprarmos a vela dos trinta anos.
Mas aí é muita pira, e convém à mim e à você dissecar ela em várias outras sub-piras para a gente entender de onde vem esse rolê.
Acho que já falei disso por aí, mas: quando eu era pirralha, na casa dos doze ou treze anos, eu estabelecia metas absolutamente inviáveis para mim como, por exemplo, escrever um livro inteiro ao final do ano, aprender um idioma de forma completa e ser a melhor aluna da sala. Demorou alguns anos para que isso me levasse à sala de terapia porque eu, obviamente, surtei, e mais alguns anos para que psicólogos e psiquiatras falassem que, minha querida, isso se chama bipolaridade e você é como Nina Simone. Depois de uma sequência mais ou menos confusa de escitalopram, aripiprazol, lítio, mirtazapina e afins e um bocado de terapia, eu melhorei, sim, mas eu ainda preciso vir aqui falar sobre como essa coisa de querer ser absolutamente excelente e brilhar como uma estrela cadente não é coisa só da minha cabeça. Pelo menos, Jonathan Larson compartilha disso comigo — e a pior parte é que a pressa dele tinha sentido, pois o infeliz morreu aos trinta e cinco anos sem nunca ter visto o sucesso que foi Rent, a sua maior obra que permaneceu doze anos em cartaz.
Sinceramente, a ironia da morte dele, quando você olha para a letra de 30/90, é um negócio que me amarga a alma até as profundezas dos meus ossos. Muita gente merecia algo assim, mas não Jonathan. Mas isso acontece o tempo todo: pessoas morrem o tempo todo, e é por isso que estamos sempre correndo contra o tempo para tirar da vida o que for possível.
Às vezes, eu me pergunto se eu estou velha e a conclusão é que não — ora, não estou velha em si. Estou na idade adulta perfeita, na qual as pessoas iniciam e engrenam seus projetos de vida. Aos trinta anos, minha mãe tinha uma filha no colo. Aos trinta anos, Madonna tinha feito um filme horroroso e pintado os cabelos de castanho, já divulgando a turnê The Girlie Show na qual cantava Erotica para meio mundo. Aos trinta anos, Jesus provavelmente estava pregando por aí, pois morreria aos trinta e três. Aos trinta anos, Mads Mikkelsen nem tinha virado ator ainda: era um ginasta. As pessoas vivem coisas diferentes aos trinta anos e, racionalmente, eu sei disso. Faz sentido. Eu não estou morta, eu não estou contemplando a morte próxima na forma de uma doença incurável e não tem por quê eu me comparar às pessoas do Under 30 da Forbes quando é preciso pagar para estar nessas listas — coisa que eu nunca faria, por questão de verba e princípio.
Mas–
Então por quê essa neura?
Farei duas coisas. Uma delas é detestável: falarei de juventude e gênero. A outra é curiosa: falarei da modernidade e da percepção alterada do tempo. Comecemos pela segunda coisa.
Já falei aqui do Titanic: eis um filme que muito aprecio, pois conta a história da libertação de uma mulher das amarras sociais através de um romance. Uma coisa que muito aprecio nessa obra, porém, foi algo que uma antiga professora minha disse certa vez: o navio serve como uma ilustração da organização social do século XIX. Quando o navio afunda, afunda também, metaforicamente, a estrutura inglesa entre nobres e plebeus que já não fazia mais sentido desde, no mínimo, a Revolução Francesa quando sangue foi vertido ali, nas mãos do povo contra os aristocratas. As diferenças de classe continuam existindo, eu sei, o ponto todo é que há uma certa mudança na percepção mundial: antes só era legal ser nobre, agora ser um comerciante próspero em terras americanas é uma coisa chique. Titanic é sobre adios, Inglaterra, hola!, EUA!, no fim das contas.
Daí minha professora comenta disso para dizer que, bem, as coisas mudaram do século XIX para cá. Rolou uma coisa meio chata, nada cottagecore, algo chamado Revolução Industrial e isso não mudou somente — segundo ela e outras pessoinhas — a forma de produzir, trabalhar e viver em sociedade. Também mudou a nossa percepção do tempo: tudo mudou rápido. As máquinas são cada vez mais rápidas. As cidades surgem, se desenvolvem e decaem mais rápido. As descobertas, as tragédias, as novidades, os transportes, tudo é frenético — e isso afeta como nós entendemos o tempo. No fim, a medida do tempo é uma coisa humana.
O tempo é, portanto, uma invenção artificial que se estica e se alonga conforme o contexto de cada um de nós — se vivemos na roça ou em São Paulo, se vivemos em 1945 ou em 2056, se estamos em um navio ou em um castelo medieval. tudo isso modifica. É uma coisa elástica e aqui estamos, no ano presente de dois-mil-e-vinte-e-três, vivendo em um mundo que não pára de mudar. O tempo passa, o tempo é dinheiro, o tempo é sentido como algo que não se pode perder à toa e os trinta anos estão aí, o que você fez até agora?
Sempre faça alguma coisa. A internet mediada pelas corporações tem essa vibe de quem determina que o tempo não é mais vinte-e-quatro horas por dia, é agora: a conexão é imediata, o acesso é ainda mais imediato e é um milhão de informações ao mesmo tempo. O tempo tornou-se não o passado, não o futuro, mas um grande momento do agora, onde tudo acontece e você sempre tem que estar a par do que está acontecendo. Se você tem uma marca, tem que fazer o meme do momento agora, não amanhã. Se uma notícia drástica acontece, você faz a live hoje, não amanhã. Se eu escrevo esse texto um mês atrás, eu considero deletar, porque talvez não sirva mais. Se uma trend acontece, a trend acontece agora, não daqui a um mês. O filme Barbie aconteceu, eu fiz o texto enquanto pude. E agora, estou cá, aos trinta anos, sentindo que não fiz nada, porque o tempo passou. Foram muitos “agora” — que se tornaram “ontem” e agora penso em como não aproveitei nenhum “agora”. Perdi o timing, diria um paulista da Faria Lima. Tem que ter timing!
A outra coisa, muito mais chata, que penso sobre é a coisa do gênero.
Quero, primeiro, dizer: eu acho gênero um assunto chato. Já falei disso no texto anterior, sobre o filme Barbie, e eu devo ser uma lésbica muito incompetente porque eu não gosto nem de pensar sobre gênero. O que é uma mulher?, perguntam as vozes desesperadas do fundo da internet e, sinceramente?, não sei. Não quero pensar sobre. Não é uma aversão ao tema, é mais como um estado inerente de preguiça.
Mas eu vou ser obrigada porque eu tenho certeza absoluta, baseada unicamente na minha experiência e de mais ninguém — mas quem quiser sentar comigo no banco, sinta-se convidada — que a percepção do tempo é diferente para as mulheres. E para as pessoas LGBT, acho, mas vou focar em nós, mulheres, que sofremos antes dos trinta anos para descobrir que estar nos trinta não é nada demais.
Miley Cyrus lançou essa musiquinha, I Used To Be Young, e eu até entendo: ela está falando de quando ela era acusada de apropriação cultural, mais ou menos dez anos atrás. Ela é de 1992, o que significa que tinha vinte anos quando We Can’t Stop saiu e, portanto, tecnicamente, ela nem podia beber nos Estados Unidos. Mas fez todo um trabalho estético em cima de uma vida de farra, maconha, álcool e twerk quando era jovem e agora está dizendo a todo mundo que não é mais jovem, nem doida, nem interessante.
You tell me time has done changed me
That's fine, I'vе had a good run
I know I used to be crazy
That's 'cause I usеd to be young
CYRUS, Miley (2023).
Daí eu quero apontar que Miley Cyrus é de 92. Ela é só um ano mais velha que eu. Mas ela canta como se tivesse à beira da morte. Ela está dizendo que “era jovem” — como se ela fosse velha. Mas ela não é velha. Ela tem trinta anos; fará trinta e um em novembro.
Porém quando você pensa em toda a construção do que é feminino e do que é ser jovem ao nosso redor, então não é difícil perceber que os trinta anos são esse marco — e ainda que Miley Cyrus seja abertamente uma pessoa não-binária, ela receberá o impacto da misoginia pela figura pública, então a pressão sobre o feminino aplica-se à Miley de toda forma. Não é a toa que Jenna decide ver o que será da vida dela aos trinta anos em De Repente 30. É uma idade fácil de lembrar, mas também emblemática: aos trinta, o relógio biológico começa a correr, aos trinta, é bom que você tenha um emprego bom, uma família, um projeto de vida. E se você é mulher, você só tem valor enquanto você é jovem — pois os incels da internet dizem que seus ovários vão se deteriorar a partir dos trinta e você não terá valor algum na sua vida.
Não que eu acredite nos incels, pelo amor de deus, o meu ponto não é esse. O meu ponto é muito mais que isso não é uma loucura exclusiva dos incels, é uma loucura social. É uma loucura que é compartilhada pelos incels, pela Miley Cyrus e pela Forbes quando resolve, todo ano, fazer uma lista de Under 30 onde pessoas de vinte-e-poucos anos conseguem coisas incríveis, fantásticas, maravilhosas que deveriam servir de exemplo para você, seu inútil que não conseguiu nada e já tem vinte e nove anos. E é muito difícil transitar nessa sociedade e assistir os filmes, ler os livros, ler as notícias e ouvir os comentários e não se deixar afetar, nem que seja um pouquinho. Faz parte do rolê; nós somos um bicho social e nós queremos aprovação social.
E é engraçado, quase hilário pensar nessas coisas e perceber que a única coisa a se fazer sobre isso é dar de ombros e não ligar, porque não há o que se possa fazer. A outra saída é a morte e, bem, um descanso eterno não parece uma ideia ruim, mas se você falar isso, as pessoas ficam nossa, amiga, tá tudo bem? e te mandam fazer terapia.
Como se eu não tivesse feito por anos!
O rolê todo é que vivemos em uma sociedade obcecada pela juventude e, sim, isso é uma coisa histórica e não vou ficar aqui fazendo um resumo expandido disso tudo. Minha hipótese é que a gente odeia o conceito de morrer e, de fato, quanto mais velho, mais próximo de partir dessa para melhor. Daí o Gilgamesh, as histórias de fantasma, as novelas espíritas e os muitos procedimentos estéticos de rejuvenescimento. De Gilgamesh à toxina botulínica: tudo, no fim, é sobre o medo de encarar a verdade irrefutável de que somos uma espécie mortal e que vai, invariavelmente, se desfazer em partes meio medonhas e fedidas no fim de tudo.
Como sempre, falei muito e nada disse.
Só divagações.
Estou pensando somente no belíssimo A Morte Lhe Cai Bem, na qual duas queridas fazem um processo mágico para retardar o envelhecimento e terminam piores do que antes. Pobrecitas.
Mas é isso: a princesa é jovem, a bruxa é velha. A princesa é bonita, a bruxa é feia. Ser jovem e morrer é trágico, ser velha e perecer é pior.
Que mundo curioso, não?
A despeito de tudo — e dessa divagação cheia de pontas soltas e nenhuma conclusão —, os meus trinta vieram suaves. Às vezes, penso: wow, trinta!, e sigo a vida. Falam-me muito que não pareço ter trinta anos e não sei o que isso quer dizer. Visto-me da mesma forma que me vestia aos vinte e um anos, e não sei se é bom ou ruim, mas não pretendo mudar: tenho pavor do estilo-adulto-feminino com a bolsa de lado e as calças de alfaiataria bege. Não fico bem de bege.
Mas tenho, em mim, o mundo de Eike Maravilha. Penso nela com frequência. Penso, sobretudo, em uma longuíssima entrevista dela que está aqui graças à Malu que achou exatamente dez segundos depois de eu postar esse post.
Eis a coisa: diferente de Miley Cyrus, não penso que a juventude é análoga à fascinação.
Não sinto que perderei o que faz de mim interessante conforme ganho mais anos de vida — não como, talvez, Miley Cyrus sente tal coisa, já que ela diz “I used to be crazy”. Talvez ela sinta que amornou. Aquietou. Que não é doida. Uma pessoa adulta, responsável, madura, ciente das próprias decisões e que não irá mais colocar dreadlocks duvidosos.
Eu, por outro lado, sei perfeitamente
vou continuar doida de pedra até o último dia da minha vida.
Descrição da imagem: Ilustração digital. Uma banana metade descascada com uma carinha sorridente e simples, sobre o fundo rosa chapado. Uma frase só: “Bloqueio criativo é foda.” e, por trás da banana, a letra “a” aparece repetida várias e várias vezes, formando uma única linha de desespero rompendo a imagem.
Oh, os doces lembretes:
Eu tenho um conto na Amazon disponível aqui, para compra por apenas R$ 1,99. Ele é um YA suave que fiz às pressas para um concurso que não ganhei — alguém, por favor, jogue ovos na empresa —, mas eu até que gosto dele e, sim, quero dizer que escrevi e você pode ler a hora que quiser!
Você pode me apoiar no Ko-Fi, dando qualquer quantia acima de 5 reais. Sim, você pode argumentar que eu deveria estar oferecendo coisas, mas não, tudo o que posso oferecer são promessas de ser quadrinista e escritora com muitas obras, mas se você quiser me pagar um chocolate gelado enquanto eu crio essas coisas para ser grandiosa tal qual meus delírios de doze anos, bem, você pode usar o Ko-Fi para isso!
Estou construindo o meu site a passos de tartaruga. Mas quando finalmente o fizer, eu o divulgarei aqui! — será meu reduto pessoal onde reunirei todas as coisas que já fiz nessa vida. Um site profissional, pois serei uma pessoa chique!
Em outubro, nós teremos uma série nova do Flanagan, a nova temporada de Our Flag is Death e a nova temporada de Spy x Family. Melhor mês de 2023. Absolutamente nada baterá outubro. Será incrível. Eu mal posso esperar. Vale a pena adiar todos os planos de suic- (é só uma piada, galera, circulando, circulando, shhhh).